sábado, abril 24, 2004

Out of the Blue (ou Vicissitude do Vício)

Funga repetidamente enquanto o indicador e o polegar esmagam um cigarro no cinzeiro. O café ainda está quente. Soam acordes de uma guitarra escapulidos do rádio. Ela trauteia o início da música: “Can you tell me why…”. Ao som da melodia e de um tremer de pernas frenético, percorre na memória as últimas horas, desde a sua saída de casa.

De madrugada abandonou a alcova para acarinhar a embriaguez habitual. «Cláudia, já nem pareces a mesma com quem casei», disse-lhe, enquanto ela atirava bruscamente o seu braço para cima do lençol com cheiro a alfazema. Uma vez mais ele tentara demovê-la. Uma vez mais em vão. Ficou ali, estático, só – um pijama azul-turquesa apoderava-se de toda a essência da alfazema.

(Como poderás mostrar a cara a alguém?)

Talvez se emborcar uma garrafa de licor, pensa ela.
(Cláudia, sabes bem que qualquer vinho rasca teria o mesmo fim. Não te faças de finória.)

Nervosamente agora encara o pulso esquerdo. O mostrador do relógio teima em acelerar o tempo. A mesma sensação que tivera de madrugada, quando se inflacionou a secura pelo líquido volátil – extinta mal encontrasse as chaves do seu carro. No mesa do hall não. Na bolsa não. Nos bolsos do casaco não. Na casa de banho não.
(Deixaste-as lá na outra noite que adormeceste na banheira, hoje não.)

Acabou por levar o carro dele. Primeiro que acertasse com a chave… apercebeu-se do travão de mão ao acelerar, e não arrancou à primeira.
(Cláudia, mete a primeira… à segunda não arrancas.)

Os nervos em franja reclamaram por um bafo. Uma fumaça. Ambas as palmas suadas; a da mão esquerda desorganizada amparou metade de um quarto do volante, a direita escorregava pelo porta-luvas caótico. O seguro. O manual do carro. Uma gravata do Simão. O panfleto com a reunião de pais no colégio. (Procura o maço por debaixo do assento. Adormeces tantas vezes no carro…)

O jornal só surgirá amanhã de rompante debaixo da sua porta. Abaixo do cabeçalho estará escarrapachado um título bem negro, possivelmente a itálico e sublinhado. No intelecto constrói o título, emaranha a própria notícia. Porque sabe como tudo aconteceu.
(Tens a palavra «escândalo» como garantia.)

Lembra-se quando no pé aplicou toda a força, este por sua vez no acelerador. Uma força originada pela raiva e pelo prazer. A raiva da vida deturpada; pelo toque da bebida nos rebordos dos lábios, pelo doce escorrer na garganta, pelo quente, vibrante, harmonioso, completo, calmo e histérico, vício da bebida. A raiva por sentir prazer. Acelerou! Talvez por isso, esquecera a existência dos faróis. Talvez por isso assustou-se com a pancada. Talvez por isso atropelara um homem. Ou talvez por nada disto, mesmo praticamente à porta de casa, abandonasse um corpo – ainda quente, envolvido em gemidos – na negrura completa; do asfalto, da madrugada. Abandonou-o com um rasto de gases do tubo de escape. Atropelou. Fugiu.
(E os miúdos Cláudia? Não há explicação e alcoolemia não passa de um algarismo. Não tem cara.)

Sem saber bem como – ainda está toda desorientada – entrou na loja de conveniência e não comprou uma garrafa. Pediu um café.

O café agora frio. Com um gesto trémulo aproxima a manga do pulôver de caxemira, passando-a disfarçadamente pelas narinas. O fungar não se vai embora.
(Até os lenços de papel esqueceste no carro.)

A sua visão distorcida alucina salpicos de sangue; sangram olhos incógnitos, as paredes, mesas, sangra a chávena com café. O mesmo sangue que deixou na estrada. O mesmo sangue que seca no pára-brisas. Nem se lembra onde descansa o carro, mas, de certeza, o sangue lá está, bem como o corpo ainda jaz na estrada.
(E os miúdos Cláudia? Quem vai tomar conta deles, se tu não te aguentas mais de três horas em pé?)

Levanta-se da mesa para pagar o café. Enquanto esmaga mais um cigarro simultaneamente recorda o farrapo azul-turquesa no pára-choques, preparando-se para a chegada da polícia a casa.

- O carro do seu marido é que o atropelou…

A música do rádio chega ao fim: “Mama's trippin' daddy's slippin' “

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