domingo, abril 25, 2004

O Menino que Tinha Tudo para Ser Ladrão

A minha quarta ou quinta palavra foi «bófia». Talvez por desde pequeno nos tratarmos no bairro por «manos». «Manos» deve ter sido a palavra que aprendi antes de bófia. Mas eu nunca fui contra a polícia. Os outros sim. Claro que ninguém gosta de acordar de madrugada com sirenes. Estridentes. Azuis. Incandescentes. Quer dizer, do barulho eles gostavam. Diziam que não. Mas gostavam. Corriam velozmente como emas e trepavam aos telhados como macacos. E faziam mais barulho. Eu também sabia aqueles “códigos” dos manos, embora me soassem sempre a grunhidos, e por isso ficava na janela atento à confusão da noite. Não era bem uma janela. Também aquilo não era bem uma casa… chamemos-lhe barraca. A barraca tinha um buraco quadrado na parede, feito pelo meu pai com o berbequim que pediu emprestado na obra. Dos lados verticais do quadrado pendiam dois trapos presos com fita-cola. O da esquerda era lilás com riscas pretas e estava roto em vários sítios. O outro castanho, sem riscas. Roto também. Os trapos eram as cortinas. No fundo, as cortinas eram restos dos vestidos da minha mãe que passavam para as minhas irmãs. Sempre era mais prático dar tesouradas que fazer bainhas. Por estarem rompidos é que eu conseguia estar dentro da confusão da rua sem sair do meu quarto.

Lá dentro haviam cinco camas. Somos cinco irmãos: eu, Jessica, Washington, Ussumane e Ana (nunca percebi como ela conseguiu ter este nome). Mas era o único que ficava ali o tempo todo à espreita. Fascinava-me aquele movimento. Quando disparava o distúrbio, crescia-me o orgulho de viver na Zona… Faz de conta que é a J (como no filme). E a minha rua era mesmo como nos filmes. Com os carros e tudo. De grandes marcas, escuros. Alguns brancos. Mas todos com luzes. Muitas luzes. Encandeavam as barracas e para acompanhar o cenário ligavam sirenes. As sirenes sempre foram as minhas favoritas. Abafavam todos os ruídos. Deixava-se de ouvir o tubo de escape da mota do mano Joe, os ensaios do hip-hop dos “C’um Tra Ri Ados”. Até os “grunhidos” eu não ouvia. Mas eles sim. Sempre com os códigos. Aliás, até hoje ainda não sei quem tinha o megafone mais potente; se os manos, se a bófia. Eu estou a dizer bófia mas não gosto nada desse nome. Respeitinho. Polícia. Agentes da autoridade. Se há coisa que eu sempre achei é que lá “figuras de autoridade” todos exibem. Bem me lembro… Sempre me encantei com as botas negras, altas, austeras, com atacadores de se perder de vista. Os bastões. A pistola. À noite não, mas nas rusgas durante o dia, até os óculos de sol apreciava. Na altura cheguei mesmo a estar convicto que um dos requisitos para se poder ser polícia era saber ajustar com perícia os óculos. Aqueles espelhados praticamente colados à cara. Ter o conhecimento de como encaixá-los. Qual o movimento certeiro para se situarem entre os fios de cabelo adequados, ou então, entre que botões da farda se deviam pendurar de modo que alcançassem o devido balanço no peito. Sabemos como são os putos… Muitos filmes. E a minha rua era mesmo como nos filmes. Se o meu grande momento era fingir-me barricado, o deles concentrava-se em expulsar o intruso do terreno. Vejamos as coisas assim; eu como um elemento passivo, e eles, sem dúvida, o activo.

Sabe, até lhe podia contar da minha tia que emigrou e ganhou um prémio lá fora. Mas disse que adora histórias de meninos; azuis, guardiães de ovelhas e sei lá mais o quê. Ainda por cima garantiu que à noitinha vou ser notícia…eu cá por mim posso continuar. Não me chame é de bófia e não garanto que os trapos ainda lá estejam no buraco para os filmar.Mas conte-me da reportagem… Como é que era mesmo? O homem polícia que em menino tinha tudo para…?

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com