domingo, abril 25, 2004

Buona Sera Principessa

Eu gostava de contar um segredo, não sei porquê

- eu até sou tímida -

mas sei que o quero fazer; quero contar que não cresci aqui

- Bambina

nem pintava os lábios agora preenchidos, delineados, cravados a escarlate escaldante para não destoar das outras mulheres

- eu até sou vaidosa -

e da próxima vez pode deixar de me tratar por

- Morfina

(Escolha estranha para um nome.

Não acha que acalmo as dores e logo causo sonolência?)

esse nome... Nem é o de baptismo colocado pela minha madre

(ainda enraizada onde as cores são aguarelas e as águas têm luz)

deixada para trás, no dia em que me despedi do Francesco de encontro a esta cidade.

(Mais bonita que a tua?

Não foi amor à primeira vista... acredito que nem o Francesco quando mo tentou explicar ao gritar para a janela do comboio

- Ti amo

sabia o que isso era... Só me apercebo de como o gostar é crescente e não imediato quando meu fratello telefona aos berros

- Dove siete? Dove siete?

a exigir que volte para casa, e sou incapaz de comprar o bilhete para o abandono deste cheiro.)

No dia em que me despedi do Francesco deixei-o, deixei-me - ambos para trás, emoldurados em vidro, numa janela do comboio; ele em terra firme de choro escondido e eu aos solavancos dos carris a vazar

lágrima

a

lágrima

cada ruela estreita e

pingo

a

pingo

os inúmeros atalhos; atarantados, atrapalhados, sufocados pelos bazares, pelas quinquilharias dos bazares, pelos turistas inebriados com as quinquilharias dos bazares atrapalhados, atarantados e sufocados pelos flashes estonteantes dos turistas inebriados mas... ...

No dia em que despedi do Francesco não deixei para trás a memória, não se esvazia de nós aquela sensação; de nunca desarmar das ruelas e dos atalhos por mais obstáculos (des)humanos que germinassem, de nunca desarmar do fim das ruelas, do fim dos atalhos, de nunca desarmar da conquista do fim do labirinto

(eu ficava sempre com a língua quente)

até se abrir em frente, à nossa frente, até se abrir à minha frente uma piazza daquele tamanho e

(eu ficava sempre com os olhos surdos)

era engolida pelos monumentos: Basílica de San Marco, Campanile, o Palazzo Ducale; espreitando à sua esquina a Ponte dei Sospiri e a gôndola do velho Pablo Macchiarolli

- Conheço mais de quatrocentas pontes

a respingar as asas das pombas

- Mais de quatrocentas gôndolas percorrem estas águas

colhendo o meu fôlego, sempre expedita na colheita dos canais e ao me desencostar da almofada veluda quando o velho estendia a mão

- Ragazza

saltava da gôndola sentindo-me princesa ao chegar a casa, onde logo aparecia meu fratello a invadir

- Onde andaste?

a minha historieta, atirando-me

- Não prestas para nada

peças de roupa para a cara, acusando

- Graças ao meu sustento, é o que é

um síndrome de irmão mais novo

(nessa altura desconhecia que a jovialidade não impedia o envelhecimento do espírito)

porque a vida a ele correu bem; formou-se, empregou-se e casou-se – realizou os sonhos da minha madre

(deixada para trás com o entardecer das escadas da stazione).

(E o Francesco?

Carregava constantemente nos lábios

- Ti amo

um sentimento não correspondido.)

Eu gostava de contar que não cresci aqui, não neste bairro de corpos estendidos verticalmente, horizontalmente, de corpos com vestígios de olhos; raiados, semi-cerrados, extraviados em ruelas e canais

(Como tu fazias.

Gôndolas há muitas...)

e é vê-los a desvendar universos "Lynchianos"; arrepios alternados com ardência faça dia ou faça noite, entrelaçam-se

(todo o tipo de gente)

nos prédios pictóricos tortos

(todo o tipo de drogas)

encaixados uns em cima dos outros

(todo o tipo de ideais)

e é vê-los a apreciar o bairro; a pé, em passeio de bicicleta, carro, aconchegados numa gôndola

(todo o tipo de gente)

sem falharem o meu afamado habitat

(alguns com entusiasmo camuflado mesmo sabendo que a sua imaginação será suplantada ao pisarem este território)

e é vê-los entrar em becos com saída de outros, comentando

- Legalização da mais velha profissão do mundo

um suposto paraíso

(A tua profissão é...

Um ponto final na hipocrisia.)

e é vê-los a multiplicarem-se na descoberta

com um propósito

com um horário

com limitações de área

com entrada livre

das nossas portas vermelhas luminosas, onde eu

- Bellissima

nascida na apaixonante Venezia; reino do meu perfeito frattelo

- Oggi!

e da garantia do Francesco

- Ti amo

na realização segura e confortável da quimera

(não minha, da minha madre deixada para trás com o anoitecer da cidade – a melhor despedida que Venezia me podia dar)

vim ao encontro da Bruna do Brasil, a Miriam do Canadá, até a Borecka da Polónia que pouco

- Yes

ou nada

- No

diz

- Thank you

ou mesmo das gordas, magras, das negras às brancas, orientais, ruivas, as que exibem celulite e as que não, as com a minha idade, com a idade da minha madre, para todas preenchermos as montras porque aqui

- Mínimo quarenta euros

somos realeza.

Eu gostei de contar todo este segredo, não sei porquê

mas sei que o quis fazer quando ouvi

- Se pago lá se vai a prestação

o seu problema, porque problemas

- Morfina, a Borecka apanhou clamídia

temos todos e o conto de fadas é vivido pelo Francesco com outra qualquer, outra que não eu

(eu até imagino essa donna)

porque eu vivo em Amesterdão no distrito das luzes escaldantes que não destoam dos meus lábios e

(eu até imagino os lábios dela)

ele sempre gostou de cores sóbrias.

(Diz-me o teu nome.

Madona, como nas pinturas de Rafael Sanzio; minha madre sempre gostou daquelas representações da Virgem Maria com o menino Jesus.)


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