Branco Sombrio
A Brites, pelo "A" maiúsculo de amiga
O quarto desenha uma oval quase perfeita. Quatro paredes circunscrevem essa fortaleza na qual te situas exactamente no centro, sob uma cobertura de tela branca. Substituíram o firmamento por esse tecto. Branco. Não tão gigante como a cama das constelações mas de tamanho desmedido para ti. Nem em bicos de pés chegas a metade. O empenho em te esticares esmoreceu; antes fingias que de manhã os dedos de um ciclope acordavam nas tuas mãos e tocavas no tecto. Branco. Colocaste estrategicamente o espelho defronte do piano. Miravas-te na superfície polida e sorrias. Quando auscultavas a Sonata n.º 11 acompanhava-te um Mozart espelhado, a tocar por detrás de ti. Só para ti. Depois dançavas – tens espaço para dançar. Circum-navegaste por todo o quarto. Piruetas. Saltos. Foste bailarina vezes sem conta, e nunca enroupaste um corpete bordado ou uma saia de tule. Muito menos sapatilhas de ballet. Os pés descalços osculavam o piso de mármore em comunhão com o tronco despido. Sempre dançaste nua. Outras vezes, também desprovida de um traje, fechavas os olhos e soltavas agudos. Risos. Gritos. Reproduzias a ária Casta Diva, atropelando as notas elevadas de Maria Callas e reunindo-as num som contínuo – tal e qual uma buzina. Novamente, sorrias para o espelho. Ao contrário do pequeno génio – Mozart surgia sempre sozinho –, vários reflexos assistiam-te. Escondias a cara emocionada atrás das mãos. Quando cessavas a cantoria, saudava-te uma multidão: “Brava Callas! Brava Maria!” Inclinavas o pescoço ora para a esquerda, ora para a direita, para acompanhar as tuas vénias de agradecimento às imagens reflectidas.
Rente à janela uma única estante mura a parede arredondada do fundo. Apenas uma estante. Personalizada. Os livros com as lombas acanhadas, viradas para dentro. Páginas outrora brancas exibem obras com recheio amarelado. Agora, gostas ainda mais delas por não estarem brancas como o tecto, como o quarto. Cansa-te o branco. Cansa-te o branco da cama; três almofadas que não amarelaram sobre uma manta cândida. E mais branco. Nas cortinas. Na luz que desafiou a ombreira da janela arrastando-se por ti. Pela tua túnica. Já não cantas nem danças. Não te deixas ficar nua. Cansa-te o branco da túnica que te encapota os pés.
Entre cada par de rectângulos em mármore, despedes-te de uma tela que pintaste com Pollock. Estão dispostas metodicamente no chão. Não as queres estragar. Recordas o dia em que partiram o espelho para caldear os cacos com a tinta dos baldes. Adoraste o facto de ele já não utilizar o pincel. Sabes distingui-las na perfeição; as que pincelaste com serapilheira, das pinceladas com a piaçá – recusaste utilizar a escova de dentes e ninguém te cedeu cordas. Mas sabes distingui-las. Sabes também que não as podes levar contigo. Prometeste deixar tudo para trás, até o piano. Logo o piano… Pertence-te a ti o privilégio de o ouvir! Estás diferente. Prometeste deixar tudo para trás.
Hoje, finalmente, deixas também para trás o branco. Abandonas tão levemente o centro do soalho marmóreo, que nem pareces tocar na pedra calcária. Quando estamos vazios os pés têm medo do chão? «Não sei». Ultimamente não tens certeza de nada.
Trespassas o portão e vislumbras a tua moradia. Tal como a luz, outras túnicas brancas desafiaram as ombreiras da janela e despedem-se de ti. Relembram a saudação do espelho: “Brava Callas! Brava Maria!” Deslizas a mão vacilante para a algibeira e retiras um lenço vermelho, onde guardaste o comprimido. Precisas de te acalmar. Encaras a palma coberta pelo tecido encarnado; a pequena pastilha e um bocado de papel. Branco. Desdobras a pequena folha e lês.
Maria:
Parece-me que após todo este tempo, é-me permitido abordá-la pelo seu nome próprio. Apenas queria lembrá-la do nosso encontro, próxima Segunda-feira.
Não tenha receio. Lá fora tudo é possível. E nem o céu é o limite para nada.
Até breve,
Dr. Neves Branco
«E nem o céu é o limite para nada», repetes, e desejas que se façam coletes de força coloridos. Cansa-te o branco.
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