quinta-feira, abril 29, 2004

A Velha do Café

A porta de vidro atravessada é fronteira entre o ar gélido que te desenhou esse nariz de palhaço. Um nariz desconsiderado quando entras no café. Ao fundo, lá está o homem que folheia páginas com cheiro a jornal. Ergue a mão e ajusta cuidadosamente os óculos, depois afaga a pequena quantidade de cabelo (da mesma cor que o teu). Inconscientemente imitas aquela carícia. Sentes os fios grisalhos gordurosos, ele não. Marcas presença pelo cheiro a mofo, oriundo das peças negras trajadas – um esforço inútil para disfarçar a sujidade acumulada.

Num movimento de caracol inicias longa caminhada. Anseias por uma igual às que aqui observas; brancas, pequenas, todas com uma asa, umas pousadas, a levantar voo, muitas acompanhadas do nevoeiro provocado por cigarros, solitárias ou a partilhar as mesas com outras. Vens em busca do sabor que a tua caducidade não alterou. Não ocupas nenhuma mesa. Os pés inchados atracam no balcão, onde dois polícias mantendo a pose, trocaram as cervejas por chávenas de conteúdo desconhecido. Suspeitas – ou talvez a certeza é tímida – que pelo toque se revelam quentes.

O teu «boa tarde» cai no vazio. Respondem-te com palavras desorganizadas das várias mesas, as mesmas ouvidas desde a travessia pela fronteira de vidro. Dos teus lábios murchos, desabrocha uma ladainha abafada pela música da rádio. Cresce-te a solidão sentida… E este café está apinhado de criaturas.

Tentas entender o paradigma imposto. Será por possuíres algibeiras rotas; com buracos fartos da corrente de ar, e por elas cessava o tilintar na caixa registadora? Importa (talvez) o aspecto das mãos; retalhadas, linhas cor da terra, unhas disformes em comprimento e dedos em largura… Calos que sobrevivem graças ao cortejo desses sacos de tralha… Será do rosário de prata (ainda vendível) que te faz comichão no peito, e apalpas de modo afectuoso? Ou talvez do terço do rosário? Aí, balança o objecto familiar das tuas súplicas. Aqui já ninguém reza . Aí balança a medalha que exibe uma imagem gasta…

Em vão, todos parecem convergir para a tua divergência. Sem direito a explicação foste remetida para a contraluz.

Alguém fala sempre contigo. Entre o bigode farfalhudo e um queixo proeminente surge a pergunta mágica do teu dia: «o mesmo de sempre?» A tua mão treme ainda mais, tal é a firmeza da boca. A mão treme ainda mais com o calor momentâneo. A tua mão treme ainda mais, agora; finalmente aquece-se o corpo ferido. Alcanças a fresta do tempo, onde a simplicidade de um gesto destrona a complexidade do pensamento ditador, do pensamento que estabelece diferenças. O teu acto é beberes esse café. Por um momento tornas-te igual a nós.

Todos os dias o teu pagamento difere dos outros – um sorriso camuflado por detrás do balcão. Voltas a ser única. Nunca ouves quando te digo «até amanhã e bom regresso a casa» porque simultaneamente pergunto-me: terás um lugar ao qual chamas de casa?

Sais com a muleta deixada à entrada, na companhia de guarda-chuvas que não são teus. São eles sempre os últimos – aprecia-los como obras de escultura, embora não estejas a sair de uma galeria envidraçada – a te perder de vista. A perder de vista esse rosto encarquilhado e aninhado no tronco curvilíneo, os pés a serem arrastados, como se receio tivessem de não sentir o chão. Desta vez, porém, movimentas vagarosamente o pescoço, e de respiração sustida despedes-te da chávena que te aqueceu; branca, pequena, com uma asa solitária pousada em cima do balcão.

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