quinta-feira, setembro 16, 2004

Não Deixaste as Tuas Asas em Casa

“O mundo é atravessado por anjos honestos e desonestos; por vezes parece até que os edifícios são seres urbanos móveis e com vontade concreta. Um edifício caiu.”

Gonçalo M. Tavares in A máquina de Joseph Walser


É sábado e ela acordou cedo. Corre o corpo adolescente pela rua principal do bairro. O mundo é um lugar estranho, sussurra-se. Das janelas dos prédios brotam cabeças humanas como se fossem cogumelos.

Aos ombros leva um par de asas, brancas. Pondera-se se roubou-as a um unicórnio, tal a irrealidade da imagem que amputou pessoas de camas. É manhã, os carros estáticos, uns pés fazem eco pelo bairro como se movidos a energia eólica. Leva o vento no corpo, alguém responde. Acendem-se cigarros, ouve-se chamar mãe, filhos, avó, dois cães e um gato. Não parece sábado porque o bairro tem a energia das manhãs de dia de trabalho. Varandas e janelas apinhadas. Cravam-se olhos numa rapariga, a trepar as escadas de incêndio do prédio amarelo. Escolheu o menos alto, pensa-se sem o dizer.

Atingem o cume do edifício: a multidão de olhos e a rapariga. A rapariga sobe ainda mais alto: senta-se no que aparenta ser uma parabólica. Há um riso frenético, surge no cimo, e percebe-se que contem o mundo todo lá dentro. Ela vira as asas para a rua principal. Já ninguém lhe vê a cara. Estica pernas e abre os braços. Até os cabelos lembram o Cristo na cruz mas peca por ter asas, gigantes e frágeis que parecem coladas a cuspo. Grita-se do prédio amarelo contagiando assustadoramente as gargantas da população, como quando alguém boceja à nossa frente. A rapariga salta. O eco do bairro agora é feito de dezenas de pés a entrar em casa, descem escadas, abrem-se portas de prédios; a rua sofre assalto pela multidão que dispara alarmes ao acordar os carros, antes estáticos. Trocam-se empurrões. O prédio amarelo é circundado, enquanto se repete que o mundo é um lugar estranho.

Encontram as asas do corpo humano que proporcionou o acordar enérgico, e é sábado. Surge o pasmo, denunciado por oh!, ah!, e risos. O mundo não é um lugar estranho, nós é que o estranhamos, alguém escreve. Cala-se a multidão. Os risos da rapariga enfraquecem, enquanto adormece deitada num trampolim na traseira do prédio menos alto. Porque hoje é sábado e ela acordou cedo.


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