quarta-feira, setembro 15, 2004

Somewhere in London

Madrugada: duas e dez e não acerto o relógio à hora local. Árvores de um lado da estrada. Casas brancas do outro. São todas brancas. Imensas casas onde tabuletas exibem a mesma palavra: “Hotel”.

Quando o Lee perguntou se queria dividir o táxi nem hesitei. A mochila de repente a pesar uma tonelada e o corpo a pedir

- Hostel? No problem, man

descanso, cedendo às mais de 24 horas de vigília.

A conversa fluiu e a última viagem da noite, entre Dover e Londres, com três mudanças de comboio, tornou-se suportável. Claro que ele não falava português, apenas

- Frango

uma palavra apreendida, não sei porquê, por um amigo dele que montou tendas em Lisboa

- Rock in Rio, man

enquanto ele foi destacado para outro espectáculo. Percebi Copenhaga mas não o confirmo.

O que o Lee faz durante bastante parte da sua vida é montar tenda. Em festivais. Tem acesso aos bastidores, por erguer estruturas metálicas e arquitectar palcos de grandes dimensões; assim ganha o pão do dia-a-dia
(bem como o amigo ganha
- Frango)
e trava conhecimento com as bandas após o concerto
- Metallica! I’ve met Lars, man.

Remediei como pude o seu desconhecimento na nossa língua. Eduquei-o com todo o calão que me ocorreu: apanágio entre dois rapazes de nacionalidade diferente que se cruzam. Sou incapaz de deixar um rapaz montar tendas Europa fora, com aquela única palavra

- Frango

de possível tradução não muito máscula na língua do Shakespeare. Em troca, ele descreveu-me o seu bairro

- Somerset

algures no sul de Inglaterra. Contou-me que de Londres até casa era só apanhar um autocarro qualquer. Depois seguia a pé. Porque onde vive

- Somerset

os transportes param às 20h.

Pareceu-me um rapaz normal. Acima da temperatura que associo aos ingleses. Acima do frio. Não tinha escapatória ao sotaque british – um pouco efeminado na minha opinião – mas não o associei ao sóbrio e conservador gentleman. Mostrou-me a namorada, amachucada na foto moldada a um dos bolsos laterais das calças, com uma típica

- She’s always changing the colour of her hair

conversa de amigos meus. Como quem muda de temperamento?, perguntei, e partilhámos gargalhada com

- Like all the women

a resposta.

Depois disse-lhe que precisava descansar. Saí de Lisboa ontem à tarde. Cheguei a Paris e só visitei a Gare du Nord, onde apanhei novo comboio até Calais. Queria atravessar o Canal da Mancha. Tinha que o atravessar. Ninguém chega à Escócia de ferry sem atravessar o Canal. Nem alguém chegou à Escócia de comboio sem, infelizmente, atravessar Inglaterra e muitas vezes, ter que parar aqui. Em Londres. Por pensar em parar, lembro-me de frisar que queria uma cama. Uma pousada.

- Hostel? No problem, man.

Já percorri o quarteirão todo. De quando em vez passa um carro na estrada. Ou um táxi, tipicamente inglês. Acrescento novo item à minha lista intitulada: “Porque é que os ingleses são diferentes em tudo, não é uma pergunta”.

Lee conhece melhor do que eu, a capital onde o chá reina sobre o café, assumi. Sou o “Englishman in New York”, ou melhor, o “Portuguese in London”, pensei, enquanto ele e o taxista conversavam em amena cavaqueira como se se conhecessem desde miúdos. Ainda que o volante, no lado direito – item número quatro da lista –, estivesse entre mãos com articulações empenadas o suficiente, para serem quer do meu, quer do avô dele.

Só leio “Hotel”. Recusaram o euro (ler a minha lista) mas toda a gente é capaz de converter pounds e assumir que Londres é possivelmente a cidade mais cara da Europa. A mochila já não pesa uma tonelada. Aposto nas duas ou três. Certifico mentalmente de que expliquei a minha necessidade quando o Lee

- Hostel? No problem, man

entregou-me este gatafunho que sinto vontade de esmagar com uma mão só. Parece-me ser a sua noção de um croquis.

Esmurro a minha companhia: a mochila. Não tem culpa do não avanço até à Escócia. Somos dois sem abrigo, à força. Estacionados à soleira de uma das casas. Brancas. A estação está fechada. Abre às 05h. Possibilita que o que eram os meus pés, no agora são blocos de gelo. A madrugada é fria. Da mesma temperatura que sinto perto de um perfeito gentleman. Árvores do outro lado da estrada. Nenhum “Hostel” à vista. Um e outro e mais um e ainda outro “Hotel”; sem S depois do O. E o Lee

- Hostel? No problem, man

a esta hora em Somerset. Uma rapariga para o receber de cabelo lilás ou verde fluorescente, ainda assim mais quente

- Like all the women

que a soleira desta porta; descrita por dois adjectivos: fria e branca.

Começa a chover. Atiro à estrada uma folha de papel, na esperança que se desfaça o que se assemelha a um gatafunho de criança. Um traço horizontal imita a estrada. Linhas verticais de um lado e o que imagino serem casas do outro, em forma de rectângulos. Observo chuviscos desfazerem tinta e o papel. Já só percebo um “mailto:“leequalquercoisa@hotmail.com”; a única prova de que alguém garantiu existir um

- Youth hostel, I know man

nesta rua.

São duas e vinte e não preciso de acertar o relógio à hora local. Espanto-me. Não anoto na lista. É a mesma de Portugal. Onde encontro pousadas e uma cama num “Hotel” não está pelos olhos, nariz, boca e mais o resto da cara. A hora é a única coisa que me é familiar de momento. Grito:

- Lee we’ve got a problem. Man!

Londres, 12 de Agosto de 2004

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