quinta-feira, julho 08, 2004

Suicídio da Carta de Suicídio (Two)

“Kneelin', looking through the paper though he doesn't know to read
Oh, prayin', now to something that has never showed him anything
Oh, feelin', understands the weather of the winters on its way
Oh, ceilings, few and far between all the legal halls of shame”
Vedder, Gossard; Even Flow

Agá de hermético, como cada um dos vidros do carro estacionado defronte a dois ursos. Dois ursos sobre o mar: para sempre no Inverno com o agá de hibernação. Duas rochas sobre o mar transformadas em ursos. Um carro a hibernar na Praia da Ursa. Um carro mudo com a chave asfixiada pelas mãos de uma rapariga. A silhueta de uma boca de rapariga. Uma boca aberta sem moscas. O mundo cego com os restantes sentidos não apurados, com a ilusão de um carro às moscas. O mundo fora do carro enganado pelos vidros fumados. Dentro do carro uma rapariga surda para com o mundo lá fora, a olhar lá fora o mundo cego que não a vê lá dentro. Por dentro. Entre vidros fumados. Lado a lado; a caneta intacta e uma carta sem condimento. Uma folha completamente branca, completamente intacta como a caneta. Carta e caneta – ambas no lugar do morto. No lugar do condutor a silhueta de uma boca. Sem moscas. Aberta. Por dentro. Fechada. Lá dentro. Um contorno de um corpo de rapariga. Mais a dentro. Por ela adentro. Uma dor branca por coisa de nada, por nada de novo. Novamente o branco. Uma carta em branco. Sem nada. Com nada. Novamente o nada. Andar para trás e para a frente. Ou vice-versa. Ou o mesmo que não andar – como quando a rapariga cheia de pressa, fixa os olhos nos pés. E é o mesmo que não andar quando fixa o passo a todo o gás. Parece não andar. O mundo cá fora a fixar a rapariga. À pressa. Parecer que ela não quer andar e não é o mesmo que não andar. O mundo de fora. Cego. A silhueta de uma rapariga a fazer sentido, a olhar-se de dentro. Ela por ela adentro. Tomar sentido aos sentidos já longe. Encurralada. Entre cinco sentidos e um sem número. Sem sentir. O sentido do sentimento. Sexto, não. Intuição, não. Insensível. Por ela adentro. Um Mundo. Camuflado. Defumado por cada um dos vidros do carro estacionado defronte a dois ursos. Um carro a hibernar na Praia de Ursa. A ignição muda pelas mãos de uma rapariga, a asfixiar a chave do carro. Dentro do carro. Uma rapariga surda para com o mundo lá fora, a olhar lá fora o mundo cego que a olha por fora. Por dentro do carro: o lugar do morto ocupado por uma carta despida. De despedida. Sem despedida. Sem dedicatória; inscrição do nada pelo nada de palavras. Um carro mudo e a rapariga a hibernar uma decisão: para sempre não ser toda ouvidos. Por isso, uma rapariga surda para com o mundo. Porque o carro estacionado defronte a um mundo cego, um mundo incapaz de parecer mais que matéria vegetal. Como a folha de papel. No lugar do morto. Branca. Intacta. Ainda no nada. Agora o nada. O fundo do fundo. O branco na folha. Asfixiada pelas mãos de uma rapariga decidida. Parecer que ela não quer andar e não é o mesmo que não andar. Até o lugar do morto. Ocupado pelo branco. Pelo suicídio. Pela morte precoce de uma carta de despedida. Restar nada. Não às palavras. Do fundo do fundo. Não à despedida. Não há palavras. Com agá de haver. Como a letra agá que existe e não se lê. Até que uma mão apague o mutismo da letra agá, até que uma mão mate súbditos do reino das palavras. Como de súbito, a silhueta de uma mão de rapariga a devolver a fala ao carro. Ao encontro. Por coisa de nada. Libertar a chave. A dor branca. Por nada de novo. Acelerar o voo branco da carta. Sem sentido. Não tomar sentido aos sentidos já longe. Libertar e libertar-se. Alívio. Uma dor de tom lívido. Acelerar o suicídio da carta de suicídio. Acelerar-se. Ao encontro. Um carro de encontro a duas rochas que formam dois ursos sobre o mar: para sempre no Inverno, com o agá de hibernação.Com tudo. A restar nada. A carta não escrita. A levar tudo. Até as palavras. Principalmente as palavras. Principalmente não deixar a insustentável imortalidade da palavra.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com