segunda-feira, maio 17, 2004

O Cântico Mudo da Sereia

A ti, que só choras quando está vento.


O sol refugiava-se no horizonte e nada se ouvia além do arrastar das ondas; ora contra a areia, ora de volta ao mar. Ricardo, ao enfrentar a praia, decidiu esconder as mãos nos bolsos e entregar os olhos ao areal enegrecido. Caminhou apreciando a certeza dos pés sobre areia molhada, como se o cérebro fosse submisso àquela marcha. A solidão de sempre teimava em o engolir para dentro do próprio corpo. Vazio de hesitações, continuou, confiante de que nem uma pegada dos seus vinte e seis anos sobreviveria ao marulho salgado.

Um vento angustiado implicava com a sua face – era imperceptível de que ponto cardeal surgia. Ricardo retirou a camisola aninhada nos ombros, enterrando queixo e lábios juntamente com o pescoço na gola alta. Instintivamente fechara os olhos para se proteger da poeira arenosa, não tão depressa, porém, que não reconhecesse um vulto na praia. Sem erguer o olhar, parou abruptamente ao aperceber-se do que tinha visualizado.

Perante Ricardo erguia-se uma figura imóvel. Abriu os olhos, aproximando-se para a observar. Tratava-se de uma construção em areia, representando um ser lendário; com formas harmoniosas a esculpir o tronco de mulher, e coberto por pequenas lâminas granulosas em relevo (imitando na perfeição as escamas de um peixe, desde um mínimo umbigo até à barbatana). A figura era-lhe familiar. Embora não fosse o arquitecto de obra tão meticulosamente projectada, aquele encontro eriçou-lhe a penugem do corpo e gelou-lhe o abdómen. Aliás, se havia recordação de infância que nunca o abandonara, era o dia em que as suas mãos – apenas com seis anos de existência – deram vida a uma sereia em terra. Tentou evocar o aviso da voz maternal:

- Olha que elas pertencem ao mar.

E pertenciam. O desapontamento do dia seguinte

- Ricardo, a sereia foi com a maré

assim o demonstrou. Não se distinguia uma única escama no areal. No entanto, ainda se lembrava quer da metade peixe, quer da metade mulher.

Conseguira abstrair-se momentaneamente do seu intuito naquela última noite de Verão. Por três meses o mar retiniu desafinado. Na verdade, durante toda a estação a maresia pareceu-lhe inodora. As vagas atracavam insípidas – pareciam ter perdido o sal, abandonado a espuma. O sol desapaixonado tinha cedido o mínimo de calor, e noite após noite, reflectia-se um luar quase incolor no espelho oceânico. Ricardo sabia que o Outono seria também agridoce. E se no meio por vezes está a virtude, noutras resume-se a um impasse. Talvez por isso, o cansaço da transparência dos dias levara-o a sucumbir.

Apesar do avassalador sossego no areal, a excitação interior não lhe permitia colocar as ideias em ordem. «Elas pertencem ao mar», dissera a mãe. O real era-lhe frígido, e agora também sarcástico. A criatura que lhe despertava vida no pensamento era duplamente irreal; além de composta por partículas minerais inanimadas, simbolizava um mito: o cântico que atraía navegantes. As sereias nem existem, murmurou Ricardo.

Dirigiu-se à rocha húmida que ladeava a escultura arenosa, sentou-se e pôs um cigarro nos lábios. Impunha-se-lhe concentrar no seu objectivo: entregar o corpo às ondas. De braços cruzados balançava-se tentando confortar-se a si mesmo. Uma memória inscrita há vinte anos atrás acordara do arquivo da sua mente, e, por momentos, permitiu-lhe o fluir de uma sensação. Como queria esvaziar a dor para libertar-se e voltar a «sentir»! Mas existe cura para uma ferida que não sangra, nem se vê? Ficou ali, sentado, tentando desemaranhar os fios do pensamento.

Pôs a descoberto o tremor da mão ao atirar para o lado a beata do cigarro. Levantou-se. Despiu-se. Recolheu a sereia do areal com a camisola. Depois elevou-a ao nível do rosto, suspirou e fitou-a pela última vez. Com a sereia nos braços correu em direcção ao mar.

Ainda hoje dizem, talvez o ponto acrescentado na narrativa deste conto, que nessa noite de mudança de estação, se ouviu um estrondo: um corpo caído na água. Em terra ecoava um choro, mas de um outro corpo, ensopado, ajoelhado na areia. Um corpo. Um homem. Um nome. Ricardo. Abafou-se o arrastar das ondas e calou a praia. Não se ouvia nada. Quando um homem finalmente chora não se ouve mais nada.


0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com