sexta-feira, abril 30, 2004

Um Dia uma Pessoa Cansa-se de Ser Criança

“indignava-me o babete e a almofada na cadeira por insistirem que eu fosse criança quando era mais adulta do que eles”,
António Lobo Antunes

in Exortação aos Crocodilos


Aqueles ali em cima da mesa a escorrer galinha pela cara são a minha família; o de bigode à direita é o meu pai, não confundir com o bigode da esquerda da tia-avó Luísa, que continuo sem perceber porque a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo, a velha tem para mais de oitenta e tal anos, tenho a certeza porque todos os anos é o mesmo bolo, todos os anos

- Luís, ajuda a Luisinha

a soprar as minhas velas e as dela, porque
(a velha não tem força nem tem dentes)
devem ter feito de propósito e ficaram todos contentes, sei que ficaram porque

- Três gerações!

quando faço anos sopro as minhas velas e as dela com a minha mãe

- Três gerações!

a chorar a sorrir, a chorar ao se lembrar

- Coincidência tão feliz

que nasci no mesmo dia que a tia dela, sem se preocupar que eu queria um bolo só para mim, com bonecos vestindo camisolas iguais às dos posters que colei no guarda-fato e com creme verde, que eu queria só soprar

- Luís, ajuda a Luisinha

sete velas e não oitenta e tal, não um bolo com uma galinha
(a Luisinha depenava galinhas na quinta do meu avô, contou-me a minha mãe

- Canja caseira Luís

quando ouviu no telejornal aquela coisa dos “nitro-fura-qualquer-coisa” nos frangos)

e creme amarelo, os campos de futebol são verdes não amarelos, o meu pai sabe que são verdes e sabe quais os frangos

- Anda cá Luís, mais um frango na baliza do Ricardo

que gosto de ver, não em bolos pai, não digas que não me fizeram de propósito

- Ora… Baptizei-te Luís porque gostava do nome, não tem nada a ver com a Luisinha

naquele dia, porque eu também não te digo que foi sem querer, não espero que percebas, nem percebes que lá por não conseguir dizer aquela coisa dos “nitro-fura-qualquer-coisa” nos frangos consigo falar, não percebes que mesmo sendo

- Faz sete anos o meu rapazolas

mais baixo que a tia-avó Luísa
(a velha não tem dentes nem mais que metro e meio)
tenho qualquer coisa a dizer, a mãe diz-te

- Ferdinando, se não ouves as palavras hás-de sentir os actos

que um dia vais sem peúgas para o trabalho e tu continuas a espalhá-las pela casa, eu continuo sem perceber porque a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo, a velha até podia não merecer, mas quando o tio gritou

- Olh’ó passarinho

atirei-vos à cara que não queria mais frangos nem

- Luís, ajuda a Luisinha

soprar oitenta e tal velas, se os meus amigos sopram as velas deles e de mais ninguém, têm campos de futebol nos bolos e não bolos com galinhas porque

- Canja caseira Luís

a velha partia pescoços na quinta do avô e todos os anos faz-lhe bem recordar quem põe os ovos, por isso um creme amarelo no meu bolo, por isso uma ave de galinheiro na minha festa de anos e nenhum boneco de camisola como os meus amigos.

Aqueles ali em cima da mesa a escorrer galinha pela cara são a minha família, quando o tio gritou

- Olh’ó passarinho

atirei-lhes com pedaços do bolo à cara e ficaram na fotografia, esta fotografia que a mãe decidiu pôr na moldura em cima da minha mesa-de-cabeceira para não me esquecer que só fiz sete anos, mas todos a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo e sopro oitenta e tal velas

- Luís, ajuda a Luisinha

e um dia uma pessoa cansa-se de ser criança. Pelo menos eu. Quanto a eles só sei na próxima festa de anos.


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