Uma Vida entre Dois Copos
Sentei-me numa mesa quadrada amparada por dois bancos. Escolhi o que tinha uma almofada no assento. Apoiei os ombros em ambas as paredes que se enfrentavam naquele recanto. Um espaço vazio separava-me as costas da parede e a minha coluna vertebral estava em perfeito paralelo com a recta da esquina. Acendi um cigarro. Mas não queria estar ali. Simplesmente nem queria ter saído de casa.
(Há momentos em que os nossos melhores amigos fingem não compreender que a confusão de uma rua empurra-nos mais para o fundo que a solidão de um quarto.)
Lá fora vocês; entre a miscelânea de caras, estilos e sotaques que ornamentavam a entrada do bar. Do lado de dentro apenas o pé direito do Duarte, encostado à porta, investindo num pequeno-almoço com uma loira oxigenada. Eu encostada àquele canto.
Ontem à noite a amálgama de odores acumulou-se nos meus poros, o whisky envolvia bolha a bolha a água com gás que entornei no meu copo, e aquela música de volume acentuado fez com que o meu coração já não batesse à sua frequência. O ritmo cardíaco foi substituído pela cadência; da melodia marginal e dos risos histéricos provenientes do casal que ocupou a mesa ao lado. Largavam gargalhadas insuportáveis; destruíram pouco a pouco a bruma essencial num encontro entre um homem e uma mulher – tal e qual desapareceu bolha a bolha todo o gás da água no copo. Esmaguei o cigarro. Fechei os olhos; até o luar feria-me.
Continuei com a espinha tal e qual um fio-de-prumo. Em momento algum quis voltar a abrir os olhos. E de repente aquela voz grave:
- Sabes que dia é hoje?
Não respondi.
(Por vezes o cérebro fornece imagens mesmo com a visão cerrada - acontece-me diversas vezes quando caminho no limbo do sono. Mas nunca o meu sistema nervoso proporcionara-me vozes. Assustei-me; os casos relatados são na sua maioria associados a distúrbios mentais ou a “crendices” espirituais.)
A primeira questão não veio solitária.
- Sabes que horas são?
Apeteceu-me responder para não se preocupar com tal facto, uma vez que facto é que era mais “tarde” do que quando formulou a pergunta. Facto, era que depois daquele luar viria o astro-rei e depois do dia voltava a noite e nem eu ou ele conseguíamos parar o bailado viciado da Terra com o Sol. Factos sem dúvida; eu sem vontade de abrir os olhos, ele não tinha relógio. Mantive-me calada.
- Achas que o tempo é ambíguo?
Um monólogo (talvez) desenrolar-se-ia fora do meu corpo – iniciei o diálogo ciente dessa possibilidade. Não precisava de abrir os olhos. Nem queria. Disse-lhe que o tempo sempre teve e possivelmente sempre terá a mesma duração; o número de dias, de horas, de segundos. O tempo dos outros. O meu tempo não. Era possível que tivesse vivido anos com 365 dias, dias de 24 horas, horas de 60 segundos. Era possível. Não me recordava. Sim, o meu tempo era ambíguo; sem princípio e sem meio, apenas com um fim. “Não vivo o meu tempo…”
- Sobrevives no tempo dos outros? – Interrompeu-me.
Tornava-se cada vez mais assustadora a irrealidade do que ali se passava. Ao invés de enfrentar o banco oposto ao meu, certificando-me da presença de um outro corpo, perpetuei-me embrenhada no pardo como se estivesse privada da vista. Ele continuou:
- Não abres os olhos… Magoa-te o Mundo?
Fiquei perplexa. Senti pedregulhos de gelo a rolar pelo corpo; arrepios em todos os ossos do esqueleto. Uma lágrima espevitada quis fazer-se à minha bochecha. Alguém invadir o nosso íntimo sem convite é como borrar a pintura do nosso exterior. Controlei-me de olhos bem fechados. E repentinamente – tal como apareceu – a voz grave cessou as interrogações. Sumiu-se.
Demorei alguns segundos até conseguir focar e absorver o panorama do bar.
(As pestanas tocavam-se repetidamente.)
O cheiro. A música. Lá fora, vocês: Ariana, Francisco, Ana… Do lado de dentro o desaparecimento do teu pé direito, Duarte, e de ambos os pés da loira oxigenada. Do lado de dentro as mesas; a do casal ao lado, a minha. No centro do cinzeiro a beata que tinha esmagado. Um copo com vestígios de whisky e outro cheio, separados por uma base para copos toda rabiscada, que memorizei na íntegra:
Galileu quando desmentiu que a Terra não girava em torno do Sol disse: “Mas que gira, gira…”
Até o luar faz-te confusão. Não me parece que possas meter uma cunha a um dos deuses para puxar o fio do candeeiro e apagar a lua. Mas que vives, vives.
P.S – Este copo é por minha conta.
A vida de alguns dura um livro. Talvez a nossa sentados no café ou a vossa ontem à porta do bar. A minha nasceu ao fechar os olhos num canto, desfez-se em cinco perguntas e morreu entre dois copos.
E nem sei quanto tempo durou.
(Há momentos em que os nossos melhores amigos fingem não compreender que a confusão de uma rua empurra-nos mais para o fundo que a solidão de um quarto.)
Lá fora vocês; entre a miscelânea de caras, estilos e sotaques que ornamentavam a entrada do bar. Do lado de dentro apenas o pé direito do Duarte, encostado à porta, investindo num pequeno-almoço com uma loira oxigenada. Eu encostada àquele canto.
Ontem à noite a amálgama de odores acumulou-se nos meus poros, o whisky envolvia bolha a bolha a água com gás que entornei no meu copo, e aquela música de volume acentuado fez com que o meu coração já não batesse à sua frequência. O ritmo cardíaco foi substituído pela cadência; da melodia marginal e dos risos histéricos provenientes do casal que ocupou a mesa ao lado. Largavam gargalhadas insuportáveis; destruíram pouco a pouco a bruma essencial num encontro entre um homem e uma mulher – tal e qual desapareceu bolha a bolha todo o gás da água no copo. Esmaguei o cigarro. Fechei os olhos; até o luar feria-me.
Continuei com a espinha tal e qual um fio-de-prumo. Em momento algum quis voltar a abrir os olhos. E de repente aquela voz grave:
- Sabes que dia é hoje?
Não respondi.
(Por vezes o cérebro fornece imagens mesmo com a visão cerrada - acontece-me diversas vezes quando caminho no limbo do sono. Mas nunca o meu sistema nervoso proporcionara-me vozes. Assustei-me; os casos relatados são na sua maioria associados a distúrbios mentais ou a “crendices” espirituais.)
A primeira questão não veio solitária.
- Sabes que horas são?
Apeteceu-me responder para não se preocupar com tal facto, uma vez que facto é que era mais “tarde” do que quando formulou a pergunta. Facto, era que depois daquele luar viria o astro-rei e depois do dia voltava a noite e nem eu ou ele conseguíamos parar o bailado viciado da Terra com o Sol. Factos sem dúvida; eu sem vontade de abrir os olhos, ele não tinha relógio. Mantive-me calada.
- Achas que o tempo é ambíguo?
Um monólogo (talvez) desenrolar-se-ia fora do meu corpo – iniciei o diálogo ciente dessa possibilidade. Não precisava de abrir os olhos. Nem queria. Disse-lhe que o tempo sempre teve e possivelmente sempre terá a mesma duração; o número de dias, de horas, de segundos. O tempo dos outros. O meu tempo não. Era possível que tivesse vivido anos com 365 dias, dias de 24 horas, horas de 60 segundos. Era possível. Não me recordava. Sim, o meu tempo era ambíguo; sem princípio e sem meio, apenas com um fim. “Não vivo o meu tempo…”
- Sobrevives no tempo dos outros? – Interrompeu-me.
Tornava-se cada vez mais assustadora a irrealidade do que ali se passava. Ao invés de enfrentar o banco oposto ao meu, certificando-me da presença de um outro corpo, perpetuei-me embrenhada no pardo como se estivesse privada da vista. Ele continuou:
- Não abres os olhos… Magoa-te o Mundo?
Fiquei perplexa. Senti pedregulhos de gelo a rolar pelo corpo; arrepios em todos os ossos do esqueleto. Uma lágrima espevitada quis fazer-se à minha bochecha. Alguém invadir o nosso íntimo sem convite é como borrar a pintura do nosso exterior. Controlei-me de olhos bem fechados. E repentinamente – tal como apareceu – a voz grave cessou as interrogações. Sumiu-se.
Demorei alguns segundos até conseguir focar e absorver o panorama do bar.
(As pestanas tocavam-se repetidamente.)
O cheiro. A música. Lá fora, vocês: Ariana, Francisco, Ana… Do lado de dentro o desaparecimento do teu pé direito, Duarte, e de ambos os pés da loira oxigenada. Do lado de dentro as mesas; a do casal ao lado, a minha. No centro do cinzeiro a beata que tinha esmagado. Um copo com vestígios de whisky e outro cheio, separados por uma base para copos toda rabiscada, que memorizei na íntegra:
Galileu quando desmentiu que a Terra não girava em torno do Sol disse: “Mas que gira, gira…”
Até o luar faz-te confusão. Não me parece que possas meter uma cunha a um dos deuses para puxar o fio do candeeiro e apagar a lua. Mas que vives, vives.
P.S – Este copo é por minha conta.
A vida de alguns dura um livro. Talvez a nossa sentados no café ou a vossa ontem à porta do bar. A minha nasceu ao fechar os olhos num canto, desfez-se em cinco perguntas e morreu entre dois copos.
E nem sei quanto tempo durou.
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