quinta-feira, maio 13, 2004

Os Sinos Tocam como Antigamente

Coincidência? O Renato a dar catequese na igreja lá da aldeia. É que mal a Ariana lamuriou-se dele à noite em casa, “coitado, estafado e sem tempo para nada”, aproveitei para o Renato me retribuir um favor, aliás, de certeza notaste o sorriso do meu Chico ontem, daqueles sorrisos paralisados com vontade própria que se prolongam por um segundo e mais um segundo e mais um, em que situação ou comentário por mais disparatado que seja desperta gargalhada, e bem tinha razão porque

- Três horas!

ontem, de uma vez por todas, cansei-me de todas as vezes que fazíamos amor

- Desta vez aguentei mais

em que eu aninhada no peito dele e ele

- Diz-me o tempo

a olhar para o meu relógio, a cronometrar o seu desempenho como um puto vidrado na playstation e a bater recordes, pois era o Chico tal e qual, sem tirar nem pôr, suados na cama; eu de braço direito a puxar um cigarro, ele a querer

- Diz-me o tempo

o meu braço esquerdo flectido a encarar os ponteiros desde há um ano atrás, no mês passado, nas últimas semanas, todos os domingos; a respeitar religiosamente a sirene do meio-dia do quartel dos bombeiros, a propósito, lembras-te do filme com o jockey a cavalo ouvindo o tiro da pistola e a fazer-se à pista?, pois era o Chico tal e qual; soava o meio-dia e era o nosso disparo

- Ana, eu aguento, havemos de bater um recorde

para no fim, escarrapachados no colchão e num terço de lençol que não fugiu da cama, ter que

- Diz-me o tempo

encarar o meu pulso esquerdo, até que ontem; o Renato na igreja lá da aldeia
(a Ariana
- Coitado, agora até aos domingos dá catequese)

eu a aproveitar para ele me retribuir um favor, decidida a dar ao meu Chico o tempo que queria ouvir, sabes como é; há que contornar as situações – já a minha avó repetia

- Sessenta anos de casamento, sessenta mil momentos de imaginação

ao folhear álbuns amarelados desde o meu avô miúdo à marinheiro, passando pelo soldado em rapaz até o uniforme de polícia (já casados), quando nós na cozinha; eu a molhar a côdea do pão na gema do ovo, a cheirar o alecrim que ela queimava para afastar o “mau-olhado”; ritual que antecedia o retirar do seu maço de tabaco do fundo falso da gaveta dos talheres, ela a olhar para mim a cantarolar

- Aninhas, imaginação! Muita imaginação

piscando-me o olho à espera das badaladas da igreja a marcar as “três” porque

- Os sinos não falham

todos os domingos o meu avô sentado no parque a jogar à bisca e quando

- Dooong… dooong… dooong…

percutia o badalo, era hora de apagar o cigarro no forno a lenha e queimar mais alecrim, só depois de disfarçar o cheiro a tabaco na cozinha lá bebericava o café da Venezuela, e outra chávena já pronta sobre um pires com duas pastilhas vermelhas e

- Os sinos não falham

o meu avô a entrar pela cozinha adentro

- Cheirinho a alecrim

para tomar os comprimidos das três da tarde.

Até que ontem, de uma vez por todas, pus término a todas as vezes que fazíamos amor religiosamente
(não a posição de missionário mas a acatar com a “partida” dada pela sirene dos bombeiros ao meio-dia)

depois suados na cama; ele a querer

- Diz-me o tempo

o resultado do seu desempenho, eu a dirigir-me à casa de banho fingindo ter lá deixado o relógio, os meus dedos a cumprirem o toque combinado para o telemóvel do Renato, os pés voltando ao quarto quando

- Dooong… dooong … dooong…

o som das pancadas metálicas e o Chico

- Três horas!

todo contente com o seu recorde, eu a conter o riso já com trocadilhos

- Quanto ao tempo está a chover lá fora

imaginando o Renato à chuva, todo pingado a tocar as campânulas de bronze adiantadas em duas horas, o Renato na torre da igreja lá da aldeia

- Por volta da uma da tarde; dás um toque e dou três badaladas

quando apareci na catequese a aproveitar para ele

- Os sinos não falham

me retribuir um favor sem perceber peva de alguém querer adiantar o tempo, mas também nada perguntei quando havia me pedido para comprar lingerie ditando um tamanho de soutien (pelo menos) dois números acima do da Ariana, claro que pode ser tudo da minha cabeça, como cantarolava a minha avó:

- Aninhas, imaginação! Muita imaginação.





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