sexta-feira, junho 11, 2004

Esqueceu-te Parar para Correr

À Andréa, pelo meu atraso

ainda que tivesse pressa nesta dedicatória


Tentando raciocinar agora com calma, não sou eu que estou assim tão atrasada quanto isso, não és tu que irás matar as saudades nem eu tão pouco, e esta que vejo no espelho tenho a certeza de que não é a mesma que atendeu o telefone e

- Estou?

de maneira nenhuma te reconheceu a voz arrastada que

- Tenho saudades tuas, Maria

me fez libertar a asa da chávena com bafo a Lúcia-lima enquanto o corpo se desenterrou do sofá, a cabeça do chapéu de coco da Sabina que usava quando eu a reler o Kundera em mais um dia de “Insustentável Leveza do Ser”, tu a me esmagares o nome de indicador espetado numa página amarela

- Tenho saudades tuas, Maria

eu a revirar os olhos que já não eram bem olhos; duas pálpebras insufladas cobrindo e cobertas por dois círculos roxos, agradecida de não me veres as olheiras, não veres uma pele baça acusando que

- Foste mazinha em não me dar o teu número

extinguiu a luz do rosto; o tabaco entope-me poros e cada vez mais sebo a se oxidar e por isso um nariz salpicado por pontos negros, por isso eu agradecida de não ter uma daquelas maquinetas que comprou a minha irmã

- Videofone, Maria

eu engolindo uma espinha invisível quando

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

tu a me facilitares vinte minutos, não, um minuto por cada ano da minha vida, logo tu a ditares trinta minutos sem pedir autorização, oferecendo-me uma pressa e
(os presentes não se recusam)

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

fui rápida e eficaz; apressei-me para o frasco das mãos acetinadas, da firmeza do rosto e correcção das rugas
(não correcção, prevenção das rugas)

enquanto o frio lá fora eu a fingir o Verão de cara banhada em pó de bronze, a dar no lenço de papel autógrafos de batom, hidratante e suave com sabor a framboesa, a me lamentar ao frasco do Chanel nº5 de todo o dia ter tido como companhia a garrafa de água porque
(cumprir a recomendação de beber 1,5 litros por dia)

agora a bexiga cheia por dentro e cá fora esta pança proeminente, tentar condizer o meu je-ne-sais-quois não pendurado num cabide e uns jeans de cintura baixa após destruir o guarda-fato inteiro e montar em cima da cama a Feira da Ladra, depois optar pela primeira escolha ou, simplesmente, com dois dedos de conversa mental saber exactamente

- Tenho saudades tuas, Maria

usar preto e parecer mais magra, disfarçar a palidez beliscando as bochechas e em vez de beber mais chá
(1,5 litros de líquidos por dia; não esquecer que a água que o chá, café ou sopa contêm também conta)

colocar as saquetas húmidas sobre as pálpebras e apagar o vermelho arroxeado, o que só por si exigiu 10 minutos para descongestionar os olhos, enquanto tu e eu num outro congestionamento confuso, de confusões porque

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

tentando raciocinar agora com calma, não estou assim tão atrasada como tu
(três horas e trinta minutos conspurcando o ambiente da sala com argolas de fumo e entupindo novamente os poros)

nem esta que vejo no espelho ,de certeza, é a mesma

- Foste mazinha em não me dar o teu número

procurada na lista amarela para receber

- Tenho saudades tuas, Maria

essa tua urgência e eu estupefacta só a puxar um fecho na boca aquando o som mudo do auscultador, pois deve ter sido a falta da maquineta

- Videofone, Maria

que te privou do meu rosto desfigurado, impessoal, desconhecido agora na calma da espera a desesperar e a rever a voz arrastada que continuo sem reconhecer; agora bem nítido o teu dedo a esmagar a Maria errada

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

eu, de poiso na recta verde que contêm Alvalade
por acaso
a rimar com a Saudade que tu não irás matar nem eu tão pouco, embora aqui cheia de pressa mas não pronta para dizer adeus às saudades
dizer adeus às minhas saudades das saudades
de que tenham pressa de matar saudades e tu a caminho

- Tenho saudades tuas, Maria

eu novamente de corpo enterrado no sofá e cabeça num chapéu de coco como a Sabina do Kundera que agora encontra-se só, a olhar-se num espelho ainda “perseguida pelo mesmo instante perdido!”.





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