quinta-feira, maio 20, 2004

Lágrima*

Ao Zé, pelo caso sério do acaso



(Cheia de penas
Cheia de penas me deito)

A rapariga saiu de casa como um autómato. As paredes do quarto tornaram-se muralhas e só a faziam sentir-se mais aflita. Queria mesmo descansar. Esquecer-se que a seguir a uma inspiração vem uma expiração. Voltar a viver sem lhe ocorrer que vivia. O bater da porta soou a um galho partido. Um estalido, nada mais. A vizinha espreitou pela porta entreaberta, metediça como sempre. E embora ela não soubesse, a rapariga sentia o respirar que a velhota julgava camuflado pela porta. Mal sabia que a garganta a atraiçoava e ouviu-se no corredor o seu ladrado. “Rapariga estranha”, começava ela, “Onde já se viu não sair de casa durante uma semana e ouvir todo o dia o mesmo sol-e-dó? Mais valia continuar com aquelas músicas de doidos”.

(E com mais penas
E com mais penas me levanto)

Prosseguiu o linguarejo tal e qual uma torneira que não se consegue fechar. “Já tenho o ouvido rachado, logo eu… A moçoila nem tinha nascido e já eu ouvia esse fado, desde que me lembro de ser gente; ai que saudades dos arraiais no adro da Igreja de Santa Maria, ai a minha Vila Nova de Santo André!”

(No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto)

Eram nestas alturas que a rapariga aplaudia interiormente morar em frente à D. Camélia. As suas personagens favoritas eram as “D. Camélias” deste mundo. Porque assim, ela podia sempre desvendar novos capítulos sem que precisasse de consultar uma única folha impressa. Também o livro daquela vida não cabia no caos da sua bolsa. Foi aí que a rapariga pensou que dificilmente as vidas davam livros. Quanto muito páginas de vida podiam dar um capítulo e capítulos de vida podiam dar um livro. No entanto naquele dia a rapariga não deu palmas dentro de si perante o calhamaço de páginas sentenciados pela vizinha.

(Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim o castigo)

A rapariga precisava de respirar. Mesmo consciente do contínuo trabalho das esponjas pulmonares, desde há uns dias para cá que se sentia a sufocar. Quando o elevador parou no rés-do-chão, o que se deixou ficar uns segundos lá dentro, era o autómato que partiu um galho ao fechar a porta. A rapariga deixara de ser rapariga. Os primeiros sinais desta metamorfose surgiram quando começou a parar no tempo. A “paragem” era o resultado físico por fugir para algum lado sem mover qualquer músculo ou nela se eriçar um único pêlo.

(Eu não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo)

Sentou-se no carro. Acompanhou o som da ignição com um suspiro irónico – denunciando um daqueles sorrisos embrionários que jamais se manifestam corporalmente.

(Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver)

Tinha que ver, ouvir, cheirar e se possível sentir o mar. E por isso a rapariga caminhou naquele entardecer sobre o muro de pedra no Cabo da Roca. A típica ventania investia no roubo do seu cachecol negro, atado por um só nó ao pescoço. Fechara os olhos quando a luz do farol iluminou o seu globo ocular.

(Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer)

A rapariga passou a língua pelas rachas labiais. Tinha ambos os olhos mirrados e o rosto igualmente árido; a favor da seca dos canais lacrimais, a favor do vento exterior. Sabia que para conseguir chorar precisava de um pensamento triste ou, então, rir até se cansar. Mas não se lembrou de nada suficientemente doloroso ou eufórico.

(Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar)

Acabou por se aperceber que o alívio não viria pelo choro nem por uma dor de barriga. Concentrou-se nos gritos do mar lá bem no fundo, bem longe do muro de pedra. As ondas lutavam incessantemente pelo escuro das rochas, do mesmo modo que o vento ainda teimava em usurpar o cachecol negro da rapariga.

(Por uma lágrima)

De repente lembrara-se do comentário da D. Camélia, “rapariga estranha”, e achou-o hilariante. Riu até a dor de barriga, até se cansar, até se aperceber do seu estado eufórico. Depois a rapariga quis também chorar. Mas aí, novamente já não se conseguia lembrar de nada. Foi ainda há pouco, que pensou num bom capítulo da sua vida que podia dar um livro. E agora, finalmente, uma litografia de um rosto húmido e não seco e os gritos do mar
lá bem no fundo
os gritos do mar, lá bem no fundo, numa luta incessante pelo escuro das rochas e pelo cachecol negro da rapariga.

(Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar)

*(Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves)


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