quarta-feira, maio 19, 2004

À Falta do Metro Encontrei uma Caravela*

Pessoas transtornadas. Do lado esquerdo Cais do Sodré. Mais do que nunca uma filigrana de seres, ou sobras de seres, porque para muitos o cansaço vence a ilusão de que permanentemente nos lembramos que estamos vivos. 18:46. A esta hora entrelaçam-se os sequiosos; da cama há muito fria, do sofá mesmo que roto – “não o troco por nada”, balbuciou há pouco o septuagenário que ainda não encontrou lugar para se sentar, podia estar a falar do sofá, até podia – da mesa já posta ou das panelas que começam a estranhar o descanso prolongado. Do lado direito Telheiras. Pessoas ansiosas. Em cada ontem é o desrespeito quase total pelos avisos com cigarros esventrados a traços vermelhos, hoje, não estou na estação: é o cais da fumaça.
(Acendo um cigarro.)

Hesitações. Acumulam-se restos e restos de seres no subterrâneo.
(Devaneio momentâneo: talvez se nos fundirmos conseguimos a essência de um Ser.)

Continuam a atravessar as portas de setas verdes. Outros questionam-se repetidamente se a devem voltar a atravessar no sentido contrário – eu não; comprei um bilhete só de ida. Fui abordada pelo homem de cabelo rapado, magricela, envergando óculos fundo-de-garrafa na cara e colete amarelo no tronco. Nas mãos segura a revista que para sua surpresa rejeitei. Não o censuro; se usasse aquele colete amarelo também confiava que o impingir da “Cais” desta não tinha como falhar.
(Acendo o segundo cigarro).
Nem nas horas de ponta vejo tanta gente. Será porque aparecem/desaparecem à pressa alucinante com que as portas abrem/fecham no metro. Como é possível. É, segundo o letreiro luminoso acima da minha cabeça: “Por motivos de ordem técnica, encontra-se de momento interrompida a circulação nas linhas amarela e verde. Não é possível de momento prever a duração da interrupção.”

Ritmos respiratórios distintos e descoordenados. Dois polícias que podiam ser gémeos passeiam-se rotineiramente entre a esquerda e a direita com o passo também rotineiro; duração de três minutos e vinte e dois segundos entre as placas Cais do Sodré e Telheiras. O sexo representativo do Instituto Superior Técnico ecoa graves nas paredes da Alameda subterrânea. Uma típica “tia” a meu lado ao telemóvel: “Adelaide, a menina já comeu?” Do outro lado; dois pares de olhos fixos de mulheres negras perante os dois metros imobilizados. Cochicham algo que não percebo, acabou em “não falta muito o Euro”. Um rapaz a correr de bolsa a tiracolo cruzou o olhar com o meu. Olhares desviados.

(O terceiro cigarro.)
Tentaram cravar-me tabaco e usei a desculpa de ser o penúltimo. Apercebo-me que os telemóveis têm rede cá em baixo, “há sopa no congelador”, disse a mulher de fatiota à executiva, encaixada entre um casal de namorados e o septuagenário do sofá roto que finalmente se sentou. Apercebo-me do gelo solitário no meu congelador e nenhuma sopa, dos azulejos escondidos do Infante D. Henrique e da sua caravela (de 1997!), o casal de namorados abraçados noutra estação em que o metro não parou, em como esta noite dormi quatro horas e a minha cama fica na linha azul.

Do lado direito Telheiras e do lado esquerdo Cais do Sodré. Em ambas as margens uma (mesma) filigrana de pessoas desorientadas. Eu sentada num muro de mármore e um amontoado de seres alheios à minha tentativa de imobilizá-los num rascunho. Alheios a tudo, menos ao metro que parou. Substituíram a pressa do corpo pela pressa do pensamento: ninguém pergunta e se um dia o metro pára mas porque o metro parou. Talvez paramos porque nos obrigam…
Em minha direcção vejo um dos polícias que podiam ser gémeos, deve trazer o aviso para saltar daqui, não sei mas deve vir aqui dizer para


* Estação da Alameda, 18 de Maio de 2004


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