Impenetrável
A culpa é do Peter Pan. De manhã, levei os miúdos a ver o filme do puto que até hoje ainda não cresceu e lembrei-me de ti, pensando realmente que pode ter sido aí que tudo começou, quando te ofereceram no nosso sexto aniversário páginas de meninos perdidos que vivem numa Terra de nome fantástico que a mãe alertava que não se deve dizer. Na verdade, os tios embrulharam-te bem; refundiram aqueles rapazinhos imberbes para todo o sempre, num laçarote dourado e papel colorido de póneis acompanhados por palhaços. Rasgaste a cobertura da prenda. Restou apenas um laçarote já não tão luzente, marcado pela sola das tuas sapatilhas de princesa cor-de-rosa, e umas bocarras vermelhas entre retalhos de cavalos anões amarfanhados na relva do jardim. Correste abocanhando com os teus dedos aquele menino que teima em não crescer, para exibires o livro ao pai, à mãe, a avó, ao Pedrinho (o teu melhor amigo) e por último à princesa azul (eu). Aquela conspiração que o pai, a mãe e a avó faziam em nos vestir iguaizinhas, ignorando o facto de que fui a primeira a aguentar com as palmadas daquela enfermeira gorda e antipática que no outro dia a mãe nos apresentou. Lá por o raio do óvulo fecundado se ter dividido em dois eu continuo a ser a mais velha. Mas não… Todas as festas de anos, para seu deleite, lá exibiam duas amostras de infantas a dividir uma boneca cremosa gigante. De certeza, também te recordas; para soprar as velas que lhe colocavam nos fiapos amarelos do couro cabeludo – digamos sem ser de passagem, que a ideia não foi muito feliz e as velas mais pareciam umas hastes – empoleirávamo-nos nas cadeiras que o pai desencantou da garagem e consciente das suas mãos aselhas, pediu ao tio José para pincelá-las a rosa e a azul (a minha).
Nunca mais deixaram de te oferecer livros. E todos os dias sentavas-te do lado de dentro do portão cinzento metalizado lá de casa, à espera da bicicleta de quatro rodas e do silvo da campainha do Pedro, enquanto no nosso quarto assisti vezes sem conta ao casamento da Barbie e do Ken (talvez por isso casei-me, tu não). Quando chegava a cabeça de caracóis loiros que se metia entre as barras férreas, de olhos fixos em ti, encarnavas uma Wendy de livro aberto sobre o colo a contar-lhe histórias como se o teu amigo quisesse fazer jus ao nome e fosse ele o Peter Pan. Mas não era. Se fosse, quando a família deixou a vila, o Pedro tinha voado até à sua contadora de histórias particular. (Naquele dia até eu desejei que ele tivesse pensamentos felizes e o pó de fada.) Não tinhas permanecido tardes inteiras acocorada de livro escancarado para quem passava na rua, na expectativa daquele tilintar singular, quando o único “Sininho” que te apareceu foi a estampa da rapariga com asas que fitavas ao repetir, “eu acredito em fadas”, o dia inteiro ouvia-te:
“eu acredito em fadas
eu acredito em fadas
eu acred…”
Hoje de manhã, antes de deixar os miúdos em casa dos nossos pais, levei-os ao cinema e finalmente baptizei a culpa: Peter Pan. Por isso, já não me espanta que tenhas organizado em tua casa este reencontro, “os bons velhos tempos”, disseste tu, e como sempre os teus amigos no jardim e tu dentro do quarto separada da festa por uma porta de vidro. Perdeste a Ana a relembrar a vez em que foste apanhada com ela a fumar no Museu da Marinha, porque fizeram disparar o alarme de fumo, e o Duarte a arranhar na guitarra o “Black” dos Pearl Jam que te faz perder o tino. Avisava-te que o Chico já emborcou uma dúzia de cervejas e com as latas te construiu uma pirâmide paralela à casota do cão, que por sua vez está com o uivo fraquejado; o que me leva a suspeitar a existência de cevada fermentada na tigela do canino. Pois continua envidraçada desse lado; a enrolar o cabelo e a amarrá-lo com o pauzinho chinês, acende um charro sozinha após colocares o “Crazy Mary” e agarra-te a essas folhas de escritos que é só o que fazes. De modo que, eu Nunca (sim, o nome da Terra desse menino) vou encher a estante dos miúdos com centenas de livros e tu livra-te de impingir o teu “Peter Pan” que observo na tua prateleira de literatura infantil. Porque eu quero que os teus sobrinhos percebam que vivem na Terra e não no “planeta do Nunca”, que pode bem ser o nome desse sítio de papel para onde foste viver numas das tardes em que casei a Barbie e o Ken, enquanto te despedias da mãe, do pai, da avó, do Pedrinho e de todos os amigos, e por último da princesa azul, repetindo “eu acredito em fadas”, comigo a perder-te e a deixar de te ouvir:
“eu acredito em fadas
eu acredito em
eu acredito
eu.”
Nunca mais deixaram de te oferecer livros. E todos os dias sentavas-te do lado de dentro do portão cinzento metalizado lá de casa, à espera da bicicleta de quatro rodas e do silvo da campainha do Pedro, enquanto no nosso quarto assisti vezes sem conta ao casamento da Barbie e do Ken (talvez por isso casei-me, tu não). Quando chegava a cabeça de caracóis loiros que se metia entre as barras férreas, de olhos fixos em ti, encarnavas uma Wendy de livro aberto sobre o colo a contar-lhe histórias como se o teu amigo quisesse fazer jus ao nome e fosse ele o Peter Pan. Mas não era. Se fosse, quando a família deixou a vila, o Pedro tinha voado até à sua contadora de histórias particular. (Naquele dia até eu desejei que ele tivesse pensamentos felizes e o pó de fada.) Não tinhas permanecido tardes inteiras acocorada de livro escancarado para quem passava na rua, na expectativa daquele tilintar singular, quando o único “Sininho” que te apareceu foi a estampa da rapariga com asas que fitavas ao repetir, “eu acredito em fadas”, o dia inteiro ouvia-te:
“eu acredito em fadas
eu acredito em fadas
eu acred…”
Hoje de manhã, antes de deixar os miúdos em casa dos nossos pais, levei-os ao cinema e finalmente baptizei a culpa: Peter Pan. Por isso, já não me espanta que tenhas organizado em tua casa este reencontro, “os bons velhos tempos”, disseste tu, e como sempre os teus amigos no jardim e tu dentro do quarto separada da festa por uma porta de vidro. Perdeste a Ana a relembrar a vez em que foste apanhada com ela a fumar no Museu da Marinha, porque fizeram disparar o alarme de fumo, e o Duarte a arranhar na guitarra o “Black” dos Pearl Jam que te faz perder o tino. Avisava-te que o Chico já emborcou uma dúzia de cervejas e com as latas te construiu uma pirâmide paralela à casota do cão, que por sua vez está com o uivo fraquejado; o que me leva a suspeitar a existência de cevada fermentada na tigela do canino. Pois continua envidraçada desse lado; a enrolar o cabelo e a amarrá-lo com o pauzinho chinês, acende um charro sozinha após colocares o “Crazy Mary” e agarra-te a essas folhas de escritos que é só o que fazes. De modo que, eu Nunca (sim, o nome da Terra desse menino) vou encher a estante dos miúdos com centenas de livros e tu livra-te de impingir o teu “Peter Pan” que observo na tua prateleira de literatura infantil. Porque eu quero que os teus sobrinhos percebam que vivem na Terra e não no “planeta do Nunca”, que pode bem ser o nome desse sítio de papel para onde foste viver numas das tardes em que casei a Barbie e o Ken, enquanto te despedias da mãe, do pai, da avó, do Pedrinho e de todos os amigos, e por último da princesa azul, repetindo “eu acredito em fadas”, comigo a perder-te e a deixar de te ouvir:
“eu acredito em fadas
eu acredito em
eu acredito
eu.”
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