sexta-feira, julho 16, 2004

Joe

Estremece as pálpebras enquanto abre as duas azeitonas que tem como olhos. A cama parece mais alta. A porta mais longe. Quase que esburaca a cobertura do quarto ao fixar o tecto, branco como um quimono de karaté. É que ainda ontem, o seu tecto exibia cinturão negro por causa de um fungo. Agora não. Ele torce o nariz; perante a ausência do bolor grudado, pelo cheiro estranho que lhe invade as narinas.

Esfrega os olhos sem a presença de um obstáculo. Lá fora deve de estar claro porque o Joe só usa óculos escuros à noite, e de dia adormece-os na mesa-de-cabeceira enquanto, normalmente, também ele dorme. De noite, é a personificação do “homem Martini” nas discotecas da moda, embora seja o “Johnnie Walker” que lhe assenta na mão. Bebe sempre whisky misturado com ácidos – um dos luxos a que o Joe se dá; pela vida de gozo que leva e pelas noites de gozo que proporciona. Mesmo quando o “Johnnie ácido” o encosta a um canto – o que ocorre no dia-a-dia, melhor, noite-a-noite –, e dissipam-se as trombas de elefantes cor-de-rosa que por vezes enrolam-se à cintura de uma das suas clientes habituais, sempre que reanima é impossível a fricção directa dos olhos porque no rosto permanecem as lentes escuras. Por isso deve de ser dia lá fora. Por isso não encontra os óculos. Por isso, vê por um óculo os óculos ao constatar o desaparecimento da mesa-de-cabeceira. E também por isso, além de rodeado por paredes e um tecto completamente branco, grita «Estou no céu», enquanto espreita debaixo dos lençóis a falta dos boxers personalizados: “Here you can call me Dick”.

Estático; agora nota-se-lhe apenas movimento pela pigmentação verde azeitona da íris. A retina faz birra por uma imagem familiar. Nem que seja uma sombra de mulher entre as suas coisas. Mesmo que essa mulher não lhe traga nada de familiar, que é o habitual sempre que acorda – o que é raro – na presença da última cliente da noite anterior. E quanto aos objectos? Simplesmente desapareceram. Apenas um cheiro; em nada semelhante ao seu, nem relacionado com alguma das suas coisas ou com coisas que se relacionam através de cheiros, mesmo que não nossas. Apenas uma cama. Sem mesa-de-cabeceira ao lado. Sem óculos sobre uma mesa-de-cabeceira. Apenas uma cama mais alta, entre quatro paredes e um tecto, onde nem o fungo pernoitou. Como se uma revolta tivesse ocorrido naquele quarto e os seus pertences abalaram. Por obra do Espírito Santo, pensa ele.

Os fios do pensamento enovelam-se a uma velocidade alucinante. Pelo menos aquando a fusão dos ácidos no whisky, Joe está preparado para os elefantes cor-de-rosa, para o efeito alucinatório. Recorda-se da mãe o obrigar nas noites de insónia, a rezar as ave-marias e os pais-nossos que aprendia na catequese – de frequência também obrigatória – impedindo que ele contasse carneiros, como todos os putos na escola primária. No entanto, agora que pode numerar carneiros, Joe fixa os olhos na porta que parece mais longe do que nunca e não lhe escapa da memória a imagem do S. Pedro. Talvez uma tentativa, infrutífera, de dominar a invasão das suas narinas pelo cheiro que para além de desconhecido torna-se cada vez mais nauseabundo. Joe teima em se decidir: se o santo apenas controla as comportas celestiais ou é também ele a decretar quem viaja até o céu ou até o inferno. Neste momento, acredita que se abrir a porta e sair do quarto, do outro lado pode encontrar de tudo. Talvez porque desapareceu tudo. E nem vale a pena tomar a nuvem por Juno: aquele quarto já não é seu, desde o instante em que o tecto branco que nem um quimono de karaté, perdeu o cinturão negro pela ausência do fungo. E nem vale a pena pensar mais nisso porque neste preciso momento, a porta abre-se e não é por obra do Espírito Santo.

- Joe, não é? Temos gente para atender que só por obras de Santa Engrácia! Não imagina a sorte que teve em pernoitar na nova morgue do hospital. Aqui entre nós, porque os que aqui estão já não nos ouvem, parece-me que o Director achou que um organismo com tanta porcaria numa só noite, no dia seguinte já tinha ido desta para melhor. Desculpe lá a demora... A enfermeira do turno anterior esqueceu-se de rotular os seus pertences. Joe, não é? Pensava que era Dick.

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