quarta-feira, maio 04, 2005

Esta História Não É só Tua


Acredita que já lá vai uma dezena de anos desde que nos conhecemos na faculdade. Parecem-me toneladas de meses atrás. Calhamaços de dias atados por sisal. Dias amarelecidos, nutridos a pó e teias e soterrados algures, no inexistente sótão do meu apartamento que hoje o teu marido descobriu.

Ambos tínhamos vinte e três anos, eu acabava o curso e tu nem por isso – poderia dizer que por descuido, mas sinceramente acredito que por opção tua. Não me lembro quem se apaixonou por quem, mas haviam muitos beijos e sorrisos e abraços e eram teus os cachos de cabelo ruivo a hibernar noite após noite na minha cama. Por isso, às manhãs era retirado o pequeno-almoço e batíamos a porta metade loucos metade adormecidos, completamente atrasados de roupa amarrotada, como se fosse o final do dia e eram 9 da manhã. Deixávamos para trás a cozinha intocável, e os lençóis brancos no chão incriminavam-nos, evidenciando fios vermelho dourados – a forma como marcas território. Eram 9 da manhã, hora da primeira aula prática e íamos no meu 2 cavalos, a meia hora de distância da Cidade Universitária. Eu perseguia os ponteiros do relógio e dizia um palavrão, tu assaltavas-me a orelha direita e eu «pára com isso». Tu rias, como sempre. (Será que ainda ris muito?) Eu a repetir «pára com isso» e finalizavas a cena seguindo o ritual: acendias um cigarro, suspiravas um bafo, um olhar a mim, um olhar à janela quando dizias «amanhã posso cá não estar». E voltavas a rir sem o som do riso, quando começavas a falar de como «o curso é uma chatice, mas quero ser a jornalista que se infiltra num cartel de droga, um dia vive num bordel, no outro caça conchas a caminho de Santiago de Compostela, faz um directo transpirando lava do vulcão em erupção como imagem de fundo, vai para casa no primeiro voo da madrugada, chega a tempo de levar os miúdos ao colégio, não sem antes fazer amor no quarto ao lado, trancado à chave». Aí eu ria escancaradamente e tu também. Ficava na dúvida se acreditavas vir a ser a Super-Mulher ou se o teu objectivo era esticar-me os lábios. Depois não ligava à incerteza e adorava-te naquele momento, a alegria. O que eu gostava dessa tua alegria. Curioso, quando alguém apaixona-se. Curioso como no princípio é um labirinto mental definir o que torna tão especial o objecto amado. Agora, que nunca mais me lembrara de ti acerto no alvo: a tua alegria.

Morrias para os dias sempre aqui. (Será que ainda te lembras?) Se à primeira vista não reconheceres o sofá-cama cinzento é natural; na altura era preto. Sem rasgões. Mas não consegui desfazer-me dele. Gosto das coisas que têm vida e os sofás das lojas cheiram a novo, cheiram a plástico mórbido. Chegávamos das aulas, jantávamos qualquer coisa da família dos congelados. Sentava-me com os apontamentos e o portátil, café e cigarros, enquanto adormecias no sofá com um livro no qual lias em voz alta uma passagem de alguém que «obviamente, não faz parte do programa; fim da citação», dizias, e segundos depois um caracol ruivo esvoaçava com um ronco. O mesmo sofá onde quase choraste por finalmente sentires «eu amo-te», o sofá onde o teu marido hoje está sentado, onde diz «não sei dela, não sei quem mais procurar, ela contou-me de si, do “Amor”». O sofá onde chorei sem sal ao ouvir-te: «Não aguento isto. Ou sufoco o sentimento ou sufoco-me. Não quero morrer ainda». O teu marido no meu sofá que foi teu. (Será que acreditas?) Acredita que me pergunto porque não queimei o sofá. Este sofá para três é demais. Pergunto-me porque tentei eu, e agora tenta ele, perceber o acabar da relação se nenhum dos dois, de certeza, questionou o começo.

Ouvi dizer que desapareceras e ao ressuscitares descobriram-te casada. Não recebi convite, não acreditei. E agora o teu marido tem sede e sou eu quem serve-lhe o whisky, fala-me dos tratamentos de infertilidade e eu lembro-me dos filhos embasbacados em frente à porta trancada do quarto, conta-me a viagem a Roma e vejo-te na Sicília nos meandros da Cosa Nostra, descreve o teu trabalho de voluntariado no vosso bairro e encontro-te numa tenda da Cruz Vermelha, entrevistando vítimas de uma catástrofe natural. Esta história a três é demais – razão pela qual não consigo dialogar com ele e ando para aqui em telepatia contigo.

O teu marido agradece-me por tudo e o meu tudo foi um sofá, um «não», dois «sim» e incontáveis «hum»; a partir do momento em que contei o terceiro whisky puro a tremer no copo que treme a mão dele.

Antes de ele sair porta fora quero gritar «ela volta» mas emudece-me a verdade. Fico-me pelo pensamento: «Tu sempre foste assim. Tu nunca mais voltas». O “sempre” e o “nunca” reuniram-se e construo uma cerca de medo para a realidade. Mesmo que por pena dele, por minha culpa calo-me. Há que se iludir com a normalidade da vida. Há que construir lugares comuns; onde o sempre é demasiado tempo e o nunca, nunca se diz. E o teu marido sofre um segundo abandono. Abandono-o com a esperança num final feliz ou infeliz quando não há teimas; há histórias inacabadas. Como esta. A de vocês os dois. Como a nossa. (Ruiva, queres dormir hoje cá?)

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