quinta-feira, março 10, 2005

A Mulher que Canta Fados e Chora Rímel


Segunda-feira, dia de encaminhar o xaile pelo Bairro Alto onde uma calçada deserta, a porta encostada, o Chico não está mas a Tasca está aberta. A luz é de vela e não há velas, um silêncio de mortos e pessoas sentadas e pessoas em pé e pessoas agarradas pelas paredes. Há pessoas, há fado. O que seria do fado sem pessoas? O que seria uma pessoa sem fado?

“Palmas, palmas!”

No centro, o apresentador de vozes. Ele, rouco, exibe-me como “uma mulher com quarenta anos de fado e a mesma frescura dos vinte”, e mente. Eu sorrio e perdoo-lhe porque me minto, também. Sessenta anos ao espelho. Por isso, mentes quando dizes a mulher “fresca” que sou, como quando eu colho ramos de cabelo que trato com um pincel e minto aos cabelos brancos; minto à pele baça; mergulho as mãos no frio do creme e passo-o pela cara; depois visto-me de preto, pareço menos roliça, e digo que é por ser Segunda-feira. E à Segunda, eu canto fados na Tasca do Chico.

“Palmas, palmas!”

Duas guitarras. A barriga roça pelas cordas de uma, no meu caminho até à outra. Chego-me de boca ao meu amigo Tó Pê e antes que lhe chegue ao ouvido, antes que eu fale, ele diz-me: “Canta aquele de quando abandonaste o teu marido para ficares comigo”. Murmuramos tão baixinho que ouço os jovens da mesa ao lado rir. Peço-lhe: “Para começar, o Fado da Isabel, em sol”, como se o fado fosse da Isabel e não meu; e é do Tó Pê, é do apresentador, dos rapazes do indicador esticado; um a pedir presunto à empregada – aquela, com mais rímel que eu e ainda assim o olhar mais leve, ainda assim o fado da Isabel também é teu –, o outro indicador de rapaz gesticula mais vinho para as raparigas e eu; peço a uma delas que apague o cigarro – como se fosse o fumo que me tosse a voz, e não a idade, não a velhice. E num movimento de cabeça mútuo – o meu mais vagaroso –, mudo, combino com a outra rapariga: ela deixa o vinho manchar o copo, agora, que deixarei o sangue manchar-me a alma.

“Palmas, palmas!”

Desce o pano dos olhos e num acorde, à minha vida mistura-se um fado que não é só meu. Canto o fado de um estendal em Alfama, canto-me a mim à tardinha, a manta axadrezada nos joelhos aquando a repetição da novela da noite, canto a sombra de um beijo de namorados, canto-me no intervalo desse beijo (ou será da novela) a dar de comer ao gato, canto-me a ausência de bons dias, um até logo e o meu noivo marinheiro que não voltou, ou será o noivo da Isabel que não volta, cantam-lhe as canoas no Tejo e cantam comigo, canta fadista de rosto emoldurado nas paredes da Tasca, canta o bêbado ao lampião, como canto a qualquer canto em minha casa, qualquer hora sem ninguém que me mande calar, que me faça rir, que peça não chores, canta, canto na Tasca onde moram fados e quem tem casa não é vadio. Canto-me de desencanto na voz e disfarço que choro pelo fado da Isabel e não pelo meu, quando me nascem nos olhos dois riachos de água negra em cada canto.

Canto até que o sangue me manche a alma. Porque a voz, há que tempos que me dói.

“Palmas.”


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