segunda-feira, março 07, 2005

Take #3


Para o P., que escreve como ele, com voz, a quem roubei outra voz


♀: «Escreveste outra vez ânus. Tens um fascínio qualquer por esta palavra. Ou talvez não bem a palavra.»
♂: «Talvez seja qualquer tique freudiano.»
♀: «Ou não bem um tique.»
♂: «Tenho uma certa tendência para utilizar palavras associadas a significados socialmente incorrectos.
Faz-me muita impressão o mau uso que se faz das palavras... como se houvesse palavras más e palavras boas.»
♀: «Ânus é associado a "significados socialmente incorrectos"? Homossexualidade? Sexo anal?»
♂: «É porco, abjecto, para estar escondido.»
♀: «Escondido? Não me faças rir.»
♂: «Não? Em termos gerais…
É considerado algo de muito privado.»
♀: «É mais fácil veres um rabo que um pénis ou uma vagina.»
♂: «As nádegas, queres tu dizer. Eu refiro-me à “interface”.»
♀: «Ao orifício.»
♂: «Chamemos-lhe porta de comunicação com o mundo.»
♀: «O nome é irrelevante.»
♂: «Eu também acho... mas a maior parte das pessoas não.»
♀: «Achas que chocas ao escrever "ânus"?»
♂: «Num mundo esterilizado e ainda preconceituoso termos como “ânus” são ainda, em grande medida, alvo de censura. Basta reparar na quantidade de vezes que se utilizam na linguagem corrente.
Isto se tirarmos a utilização cómica do seu sinónimo: “cu”.»
♀: «Cómica?»
♂: «Exactamente por ser cómica denota um incómodo na forma como se lida com o conceito. “Vai apanhar no cu” e quejandos.»
♀: «Portanto... um fetiche com a palavra, podia ser um fetiche com a imagem real em si.»
♂: «É isso que eu tento destruir: o fetiche. Porque o fetiche é sempre uma mentira, que serve mais para esconder que para revelar.
É muito bonito em cenários de possível perversão, mas a maior parte da vida é desenrolada em cenários de normalidade.»
♀: «Não concordo. Um fetiche não serve para esconder; o que é mais "misterioso" não significa necessariamente que tem como objectivo a fuga. Estás tu a dar um sentido negativo, quando o que por vezes é mais resguardado tem outro sabor. Por outro lado, na maior parte da vida, os cenários de "normalidade" são exteriores. Dentro de 4 paredes tens toda a perversão e mais alguma.»
♂: «Concordo em parte... Obviamente que uma refeição tem tanto mais sabor quanto maior o apetite: eu funciono muito segundo isto. Mas num plano emocional. Não quando tento ler/narrar o mundo como um universo poético – não gosto muito de utilizar esta palavra – que se bem que também contenha imensos ingredientes emocionais, estes só alcançam maior impacto quando expostos num contexto de extrema e profunda liberdade.
Em termos estatísticos, não acho que dentro das 4 paredes isso seja significativo. No entanto, julgo que o que gosto é da liberdade “sem acentos” (lembras-te?) na utilização das palavras.
♀: «“Termos estatísticos”? As estatísticas? Achas realmente que aí se revela o mais puro e cru de cada um?»
♂: «Não. Não acho, senão nunca escreveria como escrevo. Mas inevitavelmente acabo por ser confrontado com as tendências e comportamentos mais significativos e influentes (pelo menos no curto prazo) do que me rodeia no dia a dia.
♀: «Acredito na "perversão" do dia-a-dia e não no "desenrolar de cenários de normalidade".»
♂: «Depende de que lado dos espectros colocas o referencial de observação.»
♀: «É tudo aparência; mas o objectivo é veres "além".»
♂: «Exacto! Para lá da forma e dos significados “dicionáricos” da palavra.»
♀: «Os que vêem (ou fingem) a normalidade nada têm de novo, de interessante, de vivo!”
♂: «Estou a ver que as nossas conversas são sempre preenchidas por perspectivas semelhantes, mas que, fruto da nossa personalidade, parecem ser sempre extremamente dissonantes... bonito.»
♀: «A minha personalidade... sabes lá tu disso!»
♂: «Sim, sei eu lá.»
♀: «Rocei-te com a lâmina da espada, de propósito. Mas não há problema, é de esgrima.»
♂: «Tinha uma rolha na ponta?»
♀: «Não perguntes; revê o que sentiste.»

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