De Borboleta Para Lagarta
“frequentadas as fossas da noite
redimidos os pecados na repetição
nasce
sabe-lo
o desejo de degustação do caos
da sua primitividade idílica
o enorme colchão do sonho”
Pedro Moura, Sem título
Passou-se um dia que não perguntou por mim. Não quis saber porque fui vazia. A noite cospe-me porta adentro. Continua escuro mesmo depois de chegar ao quarto, de dar bom dia ao candeeiro que paira sobre a secretária e atrai uma borboleta e desconfio, não, e confio, sim, confio que espremeu asas pelo buraco da fechadura porque não deixei nem um rasgão à janela. Trago os olhos abertos no oitavo andar, direito, e continua escuro, mais escuro que o horizonte onde se funde o asfalto e um céu esquecido de bolçar à escuridão asteriscos fluorescentes.
Um homem solteiro acerta o despertador meia hora mais cedo, no intuito de evitar trânsito e o atraso ao trabalho como ocorreu hoje de manhã. Desvia, por momentos, a atenção para o televisor com volume demasiado alto no sétimo andar. Um choque em cadeia, reporta a jornalista perante imagens do IC19, congestionado, enquanto o homem franze o sobrolho. Não sabe se adianta o relógio, se não o atrasa ou se troca o horário laboral. Ou amanhã inicia-se no dia novamente fora do tempo. Acabou de adormecer no sofá de boca aberta e indicador arrochado no comando da televisão.
Alguém entra na cozinha do nono andar esquerdo. Leva a maçã-de-adão congelada. Uma outra maçã deixa de sentir trincas, para os lábios sem batom perguntarem que aconteceu. A resposta fala bolsa, não se refere a nenhuma das que ela tem no guarda-fato, fala oscilação, semelhante ao ritmo cardíaco que já sentia ao ouvir falar de um tal “psi”, que não lhe soou familiar mas, sem dúvida, um bom baptismo para o culpado pelo cancelamento das férias nas Maldivas, pensou ela antes de voltar a morder a maçã.
No décimo primeiro andar, uma mulher escolhe escrupulosamente a roupa para o almoço do dia seguinte. Trata-se de um encontro decisivo, em que é tudo ou nada, define ela. Escolhe o negro porque faz-lhe parecer mais magra, ficando na dúvida se leva gola alta, se a camisola três quartos de manga. Há que contrariar o boletim meteorológico, uma vez que eles contrariam as variações climatéricas, sempre pensou ela, só que ontem anunciaram aguaceiros e a esta hora ainda chove, pensa ela, enquanto senta à beira-cama com a certeza de que amanhã sai de preto.
Um casal de trintões tem a trigésima discussão em três meses de casamento. O apartamento alugado não pertence a nenhum mas é ele quem decide dormir em casa dos pais. Ela desvia uma frase das cordas vocais. Não se tocam. O elevador parte do quinto andar com ele a repetir se pudesse abraçava-me, tal como ela disse. Seis meses à frente deixarão de ter à perna a burocracia e divórcio oficializado.
Solta-se entre mãos de rapariga meia dúzia de búzios, no soalho do décimo andar. Os fusos insistem na queda, nas infinitas orientações e um deles decide-se no agora em esconder a concha por debaixo da cama. A rapariga abana a cabeça, descruza as pernas e levanta-se e olha o chão, sem perceber como há quem procure rumo em moluscos. A rapariga chora, abanando a cabeça.
Um recanto no quarto. Avanço à luz de três velas à vez do candeeiro, três pavios a acordar diferentes sombras que observo, que me observam, sem saber quem se espalha em redor de quem. Tudo ordenado no oitavo andar. Tudo calmo, no lado direito. Silêncio. Um bater de asas em silêncio. Uma borboleta bate asas no meu quarto e penso: onde será o furacão, será longe. Logo não o posso sentir aqui, não é por isso que escorrego parede abaixo de caos no ventre. Por dentro. Por fora, tudo ordenado. Calmo. Um silêncio onde fico com medo de virar lagarta.
redimidos os pecados na repetição
nasce
sabe-lo
o desejo de degustação do caos
da sua primitividade idílica
o enorme colchão do sonho”
Pedro Moura, Sem título
Passou-se um dia que não perguntou por mim. Não quis saber porque fui vazia. A noite cospe-me porta adentro. Continua escuro mesmo depois de chegar ao quarto, de dar bom dia ao candeeiro que paira sobre a secretária e atrai uma borboleta e desconfio, não, e confio, sim, confio que espremeu asas pelo buraco da fechadura porque não deixei nem um rasgão à janela. Trago os olhos abertos no oitavo andar, direito, e continua escuro, mais escuro que o horizonte onde se funde o asfalto e um céu esquecido de bolçar à escuridão asteriscos fluorescentes.
Um homem solteiro acerta o despertador meia hora mais cedo, no intuito de evitar trânsito e o atraso ao trabalho como ocorreu hoje de manhã. Desvia, por momentos, a atenção para o televisor com volume demasiado alto no sétimo andar. Um choque em cadeia, reporta a jornalista perante imagens do IC19, congestionado, enquanto o homem franze o sobrolho. Não sabe se adianta o relógio, se não o atrasa ou se troca o horário laboral. Ou amanhã inicia-se no dia novamente fora do tempo. Acabou de adormecer no sofá de boca aberta e indicador arrochado no comando da televisão.
Alguém entra na cozinha do nono andar esquerdo. Leva a maçã-de-adão congelada. Uma outra maçã deixa de sentir trincas, para os lábios sem batom perguntarem que aconteceu. A resposta fala bolsa, não se refere a nenhuma das que ela tem no guarda-fato, fala oscilação, semelhante ao ritmo cardíaco que já sentia ao ouvir falar de um tal “psi”, que não lhe soou familiar mas, sem dúvida, um bom baptismo para o culpado pelo cancelamento das férias nas Maldivas, pensou ela antes de voltar a morder a maçã.
No décimo primeiro andar, uma mulher escolhe escrupulosamente a roupa para o almoço do dia seguinte. Trata-se de um encontro decisivo, em que é tudo ou nada, define ela. Escolhe o negro porque faz-lhe parecer mais magra, ficando na dúvida se leva gola alta, se a camisola três quartos de manga. Há que contrariar o boletim meteorológico, uma vez que eles contrariam as variações climatéricas, sempre pensou ela, só que ontem anunciaram aguaceiros e a esta hora ainda chove, pensa ela, enquanto senta à beira-cama com a certeza de que amanhã sai de preto.
Um casal de trintões tem a trigésima discussão em três meses de casamento. O apartamento alugado não pertence a nenhum mas é ele quem decide dormir em casa dos pais. Ela desvia uma frase das cordas vocais. Não se tocam. O elevador parte do quinto andar com ele a repetir se pudesse abraçava-me, tal como ela disse. Seis meses à frente deixarão de ter à perna a burocracia e divórcio oficializado.
Solta-se entre mãos de rapariga meia dúzia de búzios, no soalho do décimo andar. Os fusos insistem na queda, nas infinitas orientações e um deles decide-se no agora em esconder a concha por debaixo da cama. A rapariga abana a cabeça, descruza as pernas e levanta-se e olha o chão, sem perceber como há quem procure rumo em moluscos. A rapariga chora, abanando a cabeça.
Um recanto no quarto. Avanço à luz de três velas à vez do candeeiro, três pavios a acordar diferentes sombras que observo, que me observam, sem saber quem se espalha em redor de quem. Tudo ordenado no oitavo andar. Tudo calmo, no lado direito. Silêncio. Um bater de asas em silêncio. Uma borboleta bate asas no meu quarto e penso: onde será o furacão, será longe. Logo não o posso sentir aqui, não é por isso que escorrego parede abaixo de caos no ventre. Por dentro. Por fora, tudo ordenado. Calmo. Um silêncio onde fico com medo de virar lagarta.
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