quarta-feira, setembro 22, 2004

CARPE DIEM

O telefone está a tocar mas não vou atender. Dispo o sorriso robótico do dia-a-dia e meto-o debaixo do braço. Aquele sorriso com que

- Hallooooo!

peço passaportes enquanto anoto nomes de países e pessoas que nunca sei pronunciar. Os piores são apelidos asiáticos, embora ontem ficasse grega com a chegada do grego

- Yiannis Karatzas Kazantzakis

ao mesmo tempo a francesa do focinho arrebitado, a queixar a falta de papel higiénico, e lá entreguei um rolo tamanho gigante de mão para mão, negando a vontade de o enfiar pescoço abaixo e

- Hallooooo!

o telefone pela enésima vez a tocar. Como agora. Só que agora não vou atender. O dono da pousada

- Maurizio

agarrou as chaves penduradas na recepção, meia volta volver coçando a careca, os óculos demasiado escuros que nunca sei para onde olha, nem reparou que o sol já derreteu no horizonte. Saiu nem dez minutos atrás, a lançar dois beijos que nunca sei para quem são mas

- Hallooooo!

ainda demora a volta da carrinha, azul, uma lua amarela assinada por baixo, letras a itálico
(“Carpe Diem” – the hostel in Brindisi – Italy)
como que
(“Carpe Diem”)
a gozarem comigo e que me digam que não, que não é nada disso mas não me levanto. Não ouço telefone nenhum lá dentro a tocar. Deixo-me sentada nas escadas e fecho os olhos, primeiro com muita força
(depois lembro-me que posso ficar com rugas e que me digam que não, que)
a seguir fecho-os demasiado devagar. Concentro-me nos sons cá fora; uma campainha de bicicleta na estrada, o rafeiro do cão coxo

- Pavarotti

que parece tossir e não ladrar, a portuguesa com headphones a bater o lápis no caderno como se ouvisse

(-Pixies)

uma sinfonia de cigarras, a rodeá-la na relva, como que
(“Carpe Diem”)
a gozar comigo e que me digam que não, que não é nada disso mas sou surda ao telefone. Se me esforçar o suficiente talvez consiga não ouvir a música. Todo o dia, vezes sem conta, o mesmo

- Numa numa yey, numa numa yey

romeno, dizem-me, e eu acredito porque sempre falei inglês. Só falo inglês. Quando cheguei à Europa fiquei estupefacta por quase todos falarem inglês. Na América poucos arranham outra língua; talvez

- Oui

ou

- Gracias

mas não diálogos; de onde és?, amanhã vou para “não-sei-onde”, não esta gente de mochila às costas; a saber onde são os chuveiros, quanto custa o dormitório, se tem curfew ou não tem check-out. E eu respondo de sorriso

- Hallooooo!

programado como um robot. Mas agora simplesmente não atendo o telefone nem me peçam café, logo aqui com

- Expresso

o vício do café, o Prego sempre a seguir o Grazie e eu só falo
(ainda)
inglês, e por isso consegui trabalho aqui, em Brindisi. Uma pousada numa área habitacional, colunas em constante berraria

- Numa numa yey, numa numa yey

e uns vizinhos que não se queixam
(como não me queixei quando cá cheguei)
perante a constante entrada e saída de mochilas às costas, ferries amanhã para Corfu, Igoumenitsa, Patras mas
(amanhã)
enquanto a espera, relaxam por aqui. Logo aqui com

- Expresso

a carrinha que os apanha junto à estação, é sentar em bancos gastos e não se queixam
(como não me queixei quando me sentei)
enfeitiçados por letras a itálico, pelo azul que os chama e que me digam que não, que quando cá cheguei eram daqueles tempos
(“Carpe Diem”)
tempo em que lia o talão do Multibanco com depósitos dos meus pais, e sorria para a lua ainda amarela pintada na carrinha, tão amarela como a cor dos faróis, que agora noto no portão da pousada enquanto eu
(ainda)
aqui sentada e o telefone não parou de tocar. Inspiro bem fundo. Levanto-me. Ainda não tenho dinheiro suficiente para voltar a Los Angeles. Sacudo o braço esquerdo, e visto os lábios com o sorriso robótico.



Brindisi, 27 de Agosto de 2004

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