domingo, outubro 10, 2004

Final Fantasy

Não me lembro que espinho cravado entre alvéolos pulmonares nos impedia a respirar como outros – o primeiro objectivo foi esse: esquecer, mas depois até isso esquecemos. Éramos dois robots a cumprir aquele ritual. Talvez por isso já nem sei qual era o meu problema ou o do Rafa

- Puto, mais um fim-de-semana à grande

ao imprimir mãos no volante do jipe pela enésima noite adentro, até à casa de praia dos pais dele. No porta-luvas a ementa de sempre: erva, pastilhas, cocaína e também não sei porquê uma saqueta diferente na minha mão

- Pensava que não curtias seringas…

enquanto ele

- Depois disso livras-te de qualquer fobia

acumulava meia dúzia de latas sem cerveja no assento de trás, entre duas mochilas e uma coisa, diferente no ritual; outro peão. Não daqueles que assinávamos no asfalto a borracha de pneus. Mas um peão humano, à beira da estrada

(- Aquela miúda não é caloira da faculdade?)

e depois da colheita, era a rapariga que mirava pelo retrovisor, pelo que ouvi

- O Rafa disse-me que podia vir

a voz tímida e moída, atropelada pela tosse ao suster bafos no primeiro charro que rodou, e mais um e tosse e outro outra tossidela, e só no quinto enterrado na areia – tal e qual o jipe silenciado nas traseiras da casa destino –, ela

- Nunca tinha fumado na vida

já gargalhava à vez de tossir. E devia de ter um grande problema

(ou outra coisa diferente ou semelhante a tanta coisa)

mas não posso dizer qual, porque não o perguntei à pessoa que mais droga vi meter de uma vez só, como se fosse a última e não a sua primeira vez.

Empurrou-se a porta envidraçada no limite da sala, e nenhum dos três tinha pachorra para perguntas nem respostas porque para isso era preciso falar. A rapariga fez-se cobaia de todo o arsenal: engoliu pastilhas, snifou e recordo um corpo feminino a tombar na varanda entre o meu e o do Rafa – foi ela quem finalizou o cravar da seringa numa veia do antebraço esquerdo. Seguiu-se um momento de nada por aquilo ser tudo, como

(- Depois disso livras-te de qualquer fobia)

o colocar da clave numa pauta musical, em que presenteámos cada retalho de mundo com a posição e entoação das notas. O mundo fez música. Não ouvíamos nada porque fomos música e senhores das coisas. Em posição fetal, aninhados no cimento da varanda com olhos a meio-termo, sem ser preciso falar. Sem sair da varanda, fomos mundo. Até tímidos raios de sol onde me descobri com a cotovelada do Rafa

- Puto… onde está a miúda?

ainda enclausurado na mesma banda sonora que eu e ela, algures, de certeza também. Tive a sensação de concluir a sesta quando tudo e todos iniciavam o almoço. Assim justifico reconhecer-me em pele e o resto como desenhos animados; um constante movimento das coisas até que estas se desfaziam/renasciam que nem serpentinas, e ri-me até à dor de barriga porque não era Carnaval, sem o conseguir explicar ao Rafa, que se levantou e acendeu um cigarro de sangue-frio enquanto olhava o chão da varanda

- Sim, puto… mas onde está a miúda?

Sei lá, passou-se, respondi eu, a atirar qualquer coisa para o ar e por isso surpreendi-me quando ele

- Isso era bom; o mau é que a miúda ainda está passada

chamou-me e vimo-la na praia que nem a Estátua da Liberdade, com o arpão pertencente ao escritório do pai do Rafa, à vez de um facho de luz na mão direita. Foi desnecessário responder ao Rafa

- Não vai pescar, certo?

que saltou varanda até o areal enquanto o meu cérebro, por uma eternidade de tempo desaprendeu a andar. Não movi milímetro e mintam que foi tudo muito rápido, que sou capaz de descrever negativo a negativo. Apenas consegui correr ao susto de sirenes. Agarrei a droga, dinheiro, chaves do jipe e um boné do Rafa. Infiltrei-me na multidão que precisou da morte para fazer parte da vida. Sei como tudo aconteceu, excepto de onde apareceu aquela gente na praia. Vi homens a colocarem cobertores sobre os dois; um estendido numa maca, e no outro aos ombros. Um desses homens é que me disse qual o nome dela, embora não me visse nem ouviu

(- Isso era bom; o mau é que a miúda ainda está passada)

nada da minha boca, ouvi-o a ele

- A Maria vai ter que nos acompanhar

ao fechá-la num carro com sirenes parecidas às da ambulância onde desapareceu o Rafa, só de ténis fora do cobertor. Foi uma luta corpo a corpo, mentiu alguém. Foi uma luta droga a droga, não respondi eu, porque o primeiro objectivo foi esquecer mas depois esqueci-me como se faz isso.


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