quinta-feira, setembro 30, 2004

Vida (Em) Comum (I)

1. Tal filha, mãe trocada

A minha irmã já não mora aqui. Cá em casa nunca ouvi a minha mãe em ataques de fúria capazes de desmoralizar um furacão. Nunca ouvi a minha mãe como ouvi outras mães pelas bocas dos meus amigos. «Imagina cordas vocais em máxima potência. “Pareces um espantalho” berrou-me ela, “Comigo é que não sais à rua assim”», queixava-se a minha prima Eunice, «”Assim” Jorge, “assim” percebes?», e eu percebi a coincidência com o dia em que ela decidiu fazer uma permanente ao cabelo e oxigená-lo e depois para não cansar tanto amarelo, pintou a metade direita do couro cabeludo de laranja. A tia Eulália não gostou. As duas – prima e tia para mim, mãe e filha entre elas – durante 3 meses não foram vistas juntas. E se o cabelo tudo levou, o cabelo devolveu tudo logo que voltou à cor normal. Porque a chantagem monetária na adolescência funciona às mil maravilhas: a mesada da Eunice emagrecia a cada levantamento no Multibanco. «Não é ao corte do cordão umbilical que ganhas direito sobre os fios capilares, porque nada no corpo que usas é realmente teu», explicou-me uma Eunice de catorze anos, estendida no azul do puff que tenho no quarto, «e só poderás comprar a pele que vestes ao ver os teus progenitores por um canudo». E na semana passada a profeta de vinte e três anos, de seu nome Eunice, realmente viu: formou-se em Filosofia – cumpriu-se o meu raciocínio de que tanta teoria desde miúda só podia acabar num curso destes – e cumpriu o seu próprio raciocínio, da teoria à prática: enrolou o diploma em tubo, encostou-o ao olho esquerdo, e lá mirou a tia Eulália pelo monóculo de papel. A seguir fixou-me como alvo enquanto repetia, «Jorge por um canudo, Jorge por um canudo», e com a continuação da cantilena; «capilares à vista como o arco-íris, como o arco-íris», entrevi durante estes meses a Eunice a tomar café na pizzaria do Sr. Fernando como sempre, em horário diferente da minha tia, como anos atrás.

2. Namorada de amigo meu não é homem, temos pena

Eu e o André não nos importamos que a minha prima se sente na nossa mesa. Ela é parte da nossa mesa do café. O André conhece a Eunice há tanto tempo quanto eu. Moram porta a porta, que é como quem diz lado a lado. Conhece-a melhor que eu, em determinados aspectos. Mas esses “aspectos”…passo à frente. Além da consanguinidade, sempre preferi as miúdas com cabelo de uma cor só. O André ainda mora no bairro – ao contrário da minha irmã que já não mora aqui –, naquela porta verde mesmo em frente a esta; é o meu melhor amigo, só depois meu vizinho. É com quem partilho desde puto os cd’s e partilhávamos as miúdas, mas as miúdas não ao mesmo tempo. E hoje em dia nem em tempos diferentes há partilha. Como diz a Eunice, «Já não são macaquinhos, são gorilas na cabeça», e se antes ele dava um beijinho onde eu tinha dado um beijinho, agora nem quero pensar que “ele” deu um beijinho – na melhor das hipóteses – onde era “eu” a beijar. Um gajo pensa logo no quando “eu” e “ela” estávamos não-sei-onde, a ouvir não-sei-quê com o sentimento x, até que ela disse y porque conheceu o z – que pode ser qualquer um mas nunca o nosso melhor amigo. Porque o melhor amigo não é qualquer um. Porque aí não há discussão possível – é corte mais rente do que observar os pais por um canudo. «São uns sacanas de uns românticos armados em "playboys”», cataloga-nos a Eunice nas nossas conversas de café.
3. Mudam-se os tempos, mantêm-se as fugas de casa mas depois manda-se um e-mail

Na verdade, não acredito que as mulheres sejam mais complicadas que nós. A minha mãe concorda comigo. Também eu tenho um rótulo para ela: “Mãe flower power”. Gosto. Gosto de a ver onde ela tem a minha idade. Nas fotos. Sempre com decotes em v. Descasava estrategicamente os botões a insinuar a falta de soutien, e até nas blusas ela conseguia criar um decote. E outro v; de indicador e dedo médio esticados na mão, na companhia do seu sorriso “peace” e óculos à John Lennon a rematar. É das mulheres mais bonitas que já vi. Acho que a verdadeira discussão que ela teve até hoje foi com os pais. «Jorge, aos vinte e dois anos não és nenhum mentecapto e eu também não o era. E se os pais têm sempre razão porque são os pais, então só tens duas hipóteses: monólogo ou discussão. Não suporto chantagens e esta atitude abrange uma das piores que conheço; chantagem emocional, Jorge. Quanto a monólogos já cada um faz o quanto baste na sua cabeça. Sabes que gosto da controvérsia e se roçar a polémica ainda melhor, mas os teus avós eram incapazes de discutir pelo dialogar. Os teus avós não percebiam e nem tinham que perceber e eu também não. Arrumei a trouxa e agarrei na guitarra, fiz um telefonema para a tua madrinha que na altura vivia em Madrid, apanhei um comboio e mudei de casa.» “Mãe flower power”, sem dúvida. «A única chatice é que houve uma greve qualquer nos correios e passado um mês o teu avô teve que entregar a carta que lhes enviei, na ala das mulheres do Hospital de Santa Maria onde a tua avó estava internada. Mais tarde visitei-a e preferia esquecer os olhos horrorizados das outras velhinhas quando a minha mãe fez as apresentações. “Foi ela que quase me matou”, disse a tua avó.»

4. Quem canta, os seus filhos pode espantar

A Eunice é fã da minha mãe e define a minha irmã como um bolo: «A Sílvia é um bolo que encaixa na forma, percebes? Estudas, arranjas parceiro, manténs o parceiro, esqueces porque manténs o parceiro mas manténs, tiras o curso, casas, compras carro, casa, um cão, um ou dois putos e só então divorcias-te.» A Eunice dá sempre por terminada uma observação sobre a minha irmã através de uma tossidela, que é a sua maneira de gozar da Sílvia. «Eunice, não há maneira de passar essa tosse?», pergunto eu. «De vez em quando uma pessoa engasga-se, ou engasgamo-nos com uma pessoa. Escolhe tu. Em ambas as hipóteses o resultado é sempre tosse, primo», diz ela. E ultimamente a Eunice engasgou-se imenso cá em casa. «Olha filhota, e porque é que não aprendes outra língua, faz um curso de fotografia, uma viagem e experimenta viver dias num outro país, cultura, mentalidade», disse a minha mãe várias vezes, numa tentativa de evitar um ataque ao comprimidos, por parte da minha irmã que aos vinte e seis anos não aguentou ser reincidente nos professores não colocados. (A Eunice tossia.) «Mãe, a mania das florzinhas e dos lenços na cabeça e lemas batidos como “Make peace not war”, desculpa a desilusão, mas não se manifesta nos meus genes», disse a Sílvia. (A Eunice engasgava-se.) Mas à pouco a minha mãe foi curta: “Sílvia, orienta-te.” E a Sílvia mais curta foi e orientou-se. Fechou a porta de casa, depois ligeira abriu novamente e apenas disse: “Vou-me casar”. Bateu segunda vez a porta e portanto a minha irmã já não mora aqui. Neste momento, a Eunice ainda sofre o maior ataque de tosse da sua vida enquanto rebola na carpete da sala. Agora chega-me o André a casa e não percebe nada e encolhe os ombros e ri-se. A minha mãe não tomou medicamentos. «Jorge, isto é tudo por modas; já foi o stress, depois brotaram sobredotados e agora crianças hiperactivas. Superei tudo sem calmantes», disse-me ela. Depois deu largos passos, precipitou-se em direcção ao quarto e ainda lá está, a acalmar-se. Por toda a casa ouve-se uma guitarra e a voz da minha mãe em sintonia na desafinação:

“kum ba ya, my lord, kum ba ya
kum ba ya, my lord, kum ba ya
kum ba ya, my lord, kum ba ya
oh lord kum ba ya.”

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com