quarta-feira, setembro 22, 2004

Os Amantes Sem Lençol no Rosto

A culpa não é tua por tudo isto estar a acontecer: o teu grande amor à distância de um hall de entrada. Vai para mais de dois meses que sais de casa a esquecer beijos de despedida. Levas a esperança que o elevador ganhe telepatia contigo e depressa, para que não o partilhes com os novos vizinhos: um casal (até) simpático, em que só reconheces os pés dela porque cravas os olhos no chão, e quanto a ele, é gordo, murmuras.

Depois o dia perde-se de vista e percebes que o mundo é mais que o chão. Não há elevador. Não revês os pés dela. Não vês o teu novo vizinho
(gordo)
a entrar elevador adentro com o que foi, desculpa, com o que é o teu grande amor, na mão dele. Enfias-te dentro do quarto com a noite. Perto da meia-noite, mais tic, menos tac. Enches o copo com whisky e chega. Há que séculos apetece-te puro – vai para mais de dois meses –; sem água, não interessa se líquida se gelo.

Relaxas quando chega a hora em que ela volta a ser tua, não o grande amor do gordo. Sopras o pó inexistente e metes a cassete no vídeo, desencantado na dispensa, no dia em que o conheceste a ele
(- É gordo)
e reconheceste a cara dela no hall de entrada.

Agora carregas no PAUSE; deixa-a assim: aprisiona o teu grande amor no ecrã de plasma com um aceno na mão, numa qualidade de imagem a acusar uma dezena de anos, enquanto procuras o comando da aparelhagem. Não finjas que não te decides pela música. Afundas-te noite após noite com o sol-e-dó que partilharam a quatro ouvidos
(nenhum deles do gordo)
vezes sem conta que és capaz de contar.
(Nenhuma dessas vezes existia um gordo.)

Que importa se a música tem o timbre da gargalhada dela e pões-te a sorrir, ou se procuras na película ao menos três imagens onde ela prometeu um para sempre. A culpa não é tua; culpa o gordo, o governo, o sistema, o destino, a sorte malvada ou a ironia ácida da vida. Mas a culpa não é tua se em dois meses de manhãs o teu grande amor antes esquecido, desculpa, não esquecido na fita de uma cassete, ultimamente não falha a porta em frente à tua, como um relógio que à hora certa manda o cuco cá para fora.

Deixa o telemóvel desligado na mesa-de-cabeceira. Deixa bem perto a ti o cinzeiro porque fumas sempre muito durante a sessão de vídeo, além do cigarro antes e do cigarro depois. Deita-te na cama, estende os pés e não tires os sapatos porque as pessoas quando observadas num ecrã não se importam. Não atices nenhuma luz, nem a do candeeiro. Deixa assim; apenas o halo que se apresenta no quarto, agora que trocas dois riscos do PAUSE por uma seta no PLAY: primeiro ela continua a acenar, depois ris-te e ouves três
para sempre passados
talvez porque o rosto dela no elevador incrimina dez anos após essas filmagens mas pode ser o ar ensonado da manhã.

Entretanto o filme avança e sempre de modo igual e isso dá-te uma segurança, entediante, mas acima de tudo uma segurança. E no fundo a mim também vai para mais de um mês, desculpa, mês e meio, que chego a casa na certeza de que perdi o FIM. Porque é tudo tão previsível como o amanhã onde partilhamos o bom dia com os nossos vizinhos, voltas a esquecer o meu beijo de despedida enquanto murmuras
- É gordo
aos pés do teu grande amor
e volto a confirmar-te
que não o é
não é gordo
volto a confirmar que não é gordo através de um sorriso cúmplice
(correspondido pelo gordo que não o é)
vai para mais de mês e meio. Mas a culpa não é tua, amor; são os teus olhos que teimam em cravar-se no chão do elevador.


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