Trunfo: Habilidade Emocional
Em frente estende-se um espelho do seu tamanho, quando de pé no quarto nº501. Não é o caso. Desfalecem caracóis negros entre o vime da cadeira que ocupa. A tesoura é fatal e não poupa cabelos. Faz parte do jogo. Agora faz, pensa, enquanto acende o quinto cigarro de olhos fixos em si. É no próprio reflexo que procura alternativa.
Avança para algo menos primitivo: um instrumento cortante eléctrico. Com as pontas dos dedos toca ao de leve o couro cabeludo; pica, não muito mas pica. Por menos confortável que seja, veste também o smoking. Por ser o mais indicado, convence-se, ao endireitar o laço cor de vinho, seguindo ambas as mãos por outro espelho – menor que o do quarto – do tamanho do seu tronco – dentro do elevador. Aguarda o primeiro andar: a morada do jogo.
Frequentara o casino durante a última semana. Na primeira visita foi a acompanhar Francisco que conheceu no bar do hotel nessa mesma noite. Juntos atravessaram o vermelho da carpete no hall luxuoso; seis esculturas humanas, dois vulcões artificiais a vomitar fogo e uma queda de água. Cinco horas depois, permaneciam lá dentro. Desafiaram o póquer, roleta, blackjack e outros jogos de casino inclusive as tradicionais slot machines. Não posso precisar o momento em que se apaixonou porque só o soube no depois e não no instante. Certo, é, ter-se já apaixonado pelo póquer e não por Francisco, quando ele despejou o arquivo histórico deste jogo; como derivava de um outro criado pelos persas, como chegou à Europa através do Egipto nas rotas comerciais do Mediterrâneo, e mais um chorrilho de datas e povos e alterações de regras e sequências. Ignorou tudo menos a sequência com interesse: copas, ouro, espadas e paus, padronizada em 52 cartas – que estimularam a sua presença a se tornar habitual no casino do hotel.
Noites seguidas partilhou com Francisco o quarto nº501 onde faziam amor após dividirem lucros – responsáveis pelo apetite de uma nova próxima vez – respeitando o lema de primeiro negócios depois o prazer. Mas num ontem mudou-se tudo; e é isso que recapitula no elevador, de sexto cigarro a caminho da boca que observa ao espelho.
Regressa a dois encontros cruciais. O primeiro, entre a saída do casino e os elevadores, quando foram abordados por um segurança disfarçado num smoking, que através de palmadinhas nas costas de ambos e um sorriso que lhe pareceu ranger, inscreveu-os na lista de pessoas de aspecto não consentido nas mesas de jogos – uma lista, convém referir, onde se exibem fotos digitais de consumidores como eles – é o que se pode chamar “promoção três em um”: ganhe x à banca e leve com um dos nossos pinguins humanos e ainda a sua foto no nosso espaço, agrafada à nossa lista. O segundo choque ocorria poucos metros depois. A porta do elevador fechou com uma mão lá dentro; peça do paquete que gemia do lado de fora. Nervoso, Francisco carregara a palma suada no painel de botões, não acertando no correcto. O ascensor subiu e subitamente cinco dedos engoliram-se para fora. Susto superado, regressavam à Terra, mais precisamente ao elevador, e Francisco agarrou a folha de papel entregue a seus pés pela mão já desaparecida. Leu um fax da mulher. Alertava-o que era hora de regressar a Portugal e que um congresso, tal como tudo e como ela, tinha limite.
Ri-se ao recordar a cara de Francisco mas o jogo corre bem. Não é difícil percebê-lo: em torno da mesa de pano verde, observa-se – jogadores endinheirados, turistas de classe média, músicos, dançarinas, garçons, croupiers, seguranças e todo o pacote de gente de aspecto consentido por estes – a habilidade do jogador de cabelo rapado e laço cor de vinho ao pescoço. Apostam nas suas apostas. A maioria a favor. E fizeram bem: a banca acabou de perder, mais uma vez.
Na pressa Francisco esquecera smoking, faixa e laço cor de vinho, mas não o convite para visitá-lo. Tal como a maioria das palavras ditas por ele, tinha ignorado.
Rodada por minha conta, gritou o jogador minutos atrás, e no casino gritam ainda mais alto brindes a ele, ao póquer, ao dinheiro, aos amigos, à saúde, à felicidade e alguém ergue o copo à cidade: Las Vegas.
Da porta do hotel sai um táxi a caminho do aeroporto. O taxista aumenta o volume ao ouvir
- You can leave your hat on
a voz rouca de Joe Cocker. Solta estalidos da boca enquanto observa pelo retrovisor o assento de trás. Cai um casaco. Uma camisa branca. As calças negras tropeçam no lugar do morto. Sapatos lustrosos voam pela janela e os pés ganham ténis. (Não condizem com o vestido negro, justo e curto, antes escondido debaixo do smoking.)
Alguns quilómetros atrás um paquete e um segurança são despedidos. Durante o seu turno, evaporou-se o ocupante do quarto nº501. Há consumos no hotel, de semana inteira, por pagar.
Tem o cabelo rapado mas aquele corpo não engana, pensa o taxista mais sorridente na noite de Las Vegas. À janela espreita um cigarro. É da mulher que agora considera ir a Portugal. Talvez entregar um laço e uma faixa em tons de vinho tinto. Ou, simplesmente, porque nunca lá foi.
Avança para algo menos primitivo: um instrumento cortante eléctrico. Com as pontas dos dedos toca ao de leve o couro cabeludo; pica, não muito mas pica. Por menos confortável que seja, veste também o smoking. Por ser o mais indicado, convence-se, ao endireitar o laço cor de vinho, seguindo ambas as mãos por outro espelho – menor que o do quarto – do tamanho do seu tronco – dentro do elevador. Aguarda o primeiro andar: a morada do jogo.
Frequentara o casino durante a última semana. Na primeira visita foi a acompanhar Francisco que conheceu no bar do hotel nessa mesma noite. Juntos atravessaram o vermelho da carpete no hall luxuoso; seis esculturas humanas, dois vulcões artificiais a vomitar fogo e uma queda de água. Cinco horas depois, permaneciam lá dentro. Desafiaram o póquer, roleta, blackjack e outros jogos de casino inclusive as tradicionais slot machines. Não posso precisar o momento em que se apaixonou porque só o soube no depois e não no instante. Certo, é, ter-se já apaixonado pelo póquer e não por Francisco, quando ele despejou o arquivo histórico deste jogo; como derivava de um outro criado pelos persas, como chegou à Europa através do Egipto nas rotas comerciais do Mediterrâneo, e mais um chorrilho de datas e povos e alterações de regras e sequências. Ignorou tudo menos a sequência com interesse: copas, ouro, espadas e paus, padronizada em 52 cartas – que estimularam a sua presença a se tornar habitual no casino do hotel.
Noites seguidas partilhou com Francisco o quarto nº501 onde faziam amor após dividirem lucros – responsáveis pelo apetite de uma nova próxima vez – respeitando o lema de primeiro negócios depois o prazer. Mas num ontem mudou-se tudo; e é isso que recapitula no elevador, de sexto cigarro a caminho da boca que observa ao espelho.
Regressa a dois encontros cruciais. O primeiro, entre a saída do casino e os elevadores, quando foram abordados por um segurança disfarçado num smoking, que através de palmadinhas nas costas de ambos e um sorriso que lhe pareceu ranger, inscreveu-os na lista de pessoas de aspecto não consentido nas mesas de jogos – uma lista, convém referir, onde se exibem fotos digitais de consumidores como eles – é o que se pode chamar “promoção três em um”: ganhe x à banca e leve com um dos nossos pinguins humanos e ainda a sua foto no nosso espaço, agrafada à nossa lista. O segundo choque ocorria poucos metros depois. A porta do elevador fechou com uma mão lá dentro; peça do paquete que gemia do lado de fora. Nervoso, Francisco carregara a palma suada no painel de botões, não acertando no correcto. O ascensor subiu e subitamente cinco dedos engoliram-se para fora. Susto superado, regressavam à Terra, mais precisamente ao elevador, e Francisco agarrou a folha de papel entregue a seus pés pela mão já desaparecida. Leu um fax da mulher. Alertava-o que era hora de regressar a Portugal e que um congresso, tal como tudo e como ela, tinha limite.
Ri-se ao recordar a cara de Francisco mas o jogo corre bem. Não é difícil percebê-lo: em torno da mesa de pano verde, observa-se – jogadores endinheirados, turistas de classe média, músicos, dançarinas, garçons, croupiers, seguranças e todo o pacote de gente de aspecto consentido por estes – a habilidade do jogador de cabelo rapado e laço cor de vinho ao pescoço. Apostam nas suas apostas. A maioria a favor. E fizeram bem: a banca acabou de perder, mais uma vez.
Na pressa Francisco esquecera smoking, faixa e laço cor de vinho, mas não o convite para visitá-lo. Tal como a maioria das palavras ditas por ele, tinha ignorado.
Rodada por minha conta, gritou o jogador minutos atrás, e no casino gritam ainda mais alto brindes a ele, ao póquer, ao dinheiro, aos amigos, à saúde, à felicidade e alguém ergue o copo à cidade: Las Vegas.
Da porta do hotel sai um táxi a caminho do aeroporto. O taxista aumenta o volume ao ouvir
- You can leave your hat on
a voz rouca de Joe Cocker. Solta estalidos da boca enquanto observa pelo retrovisor o assento de trás. Cai um casaco. Uma camisa branca. As calças negras tropeçam no lugar do morto. Sapatos lustrosos voam pela janela e os pés ganham ténis. (Não condizem com o vestido negro, justo e curto, antes escondido debaixo do smoking.)
Alguns quilómetros atrás um paquete e um segurança são despedidos. Durante o seu turno, evaporou-se o ocupante do quarto nº501. Há consumos no hotel, de semana inteira, por pagar.
Tem o cabelo rapado mas aquele corpo não engana, pensa o taxista mais sorridente na noite de Las Vegas. À janela espreita um cigarro. É da mulher que agora considera ir a Portugal. Talvez entregar um laço e uma faixa em tons de vinho tinto. Ou, simplesmente, porque nunca lá foi.
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