sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Vida (Em) Comum (IV)

1. Ter a resposta debaixo das nuvens

Lisboa cada vez mais uma cidade de anões. Cada vez mais lá em baixo e no outro prato da balança, a minha cabeça. Cada vez mais cá em cima. Literalmente nas nuvens. (Porque é que dói?) O avião a ganhar altitude. Como que uma contagem decrescente para que eu pense na resposta. A pressão atmosférica nos ouvidos, na cabeça. O avião quase na horizontal com as nuvens. Quase que o tempo se esgota. Porque é que dói? A resposta é melancolia, penso eu. Mas não bato palmas. Deram-me três palmadinhas ásperas nas costas, como que a marcar o compasso para a entrada de uma voz. «Estás um homem feito, André», decretou o pai da Sílvia e do Jorge quando me viu na sala. «Sabe como é que é», disse eu, que é o mesmo que não dizer nada, o mesmo que dizer não sei, não sei quando “André, o Puto” virou “André, o Homem”. Depois abraçaram-me e beijaram-me as mulheres. Eulália na bochecha esquerda, Madalena à direita. As minhas duas madrinhas honorárias. «Estás um homem feito, André», repetiram. Eu sorri. Apenas. Irmãs tão parecidas. Se uma for água, a outra é vinho. «Bebo mais que um copo de vinho à refeição e primeiro fico zonza. Depois zonza zonza. A seguir com sono.» «Eulália, vai fazer a sesta», respondia a madrinha Madalena, descalça e sentada na carpete amarela de pernas cruzadas, «e não te preocupes com os miúdos». Não entravam preocupações na área amarela da sala. Uma carpete redonda com quatro putos em cima – Jorge, Sílvia, Eunice, eu –, e ela. A pintar com os pés o tapete, sem tintas, ainda amarelo. A balouçar as cabeças. Era importante o movimento desengonçado. Ela colocava discos da Janis Joplin e do Jimmy Hendrix e frisava que era importante o movimento desengonçado, enquanto pendia os braços ora acima da cabeça, ora abaixo do umbigo e nós imitávamos. Ela de guitarra a cantar. Ela um sorriso. Ela a contar pela enésima vez a história do rapaz madrileno que fugia do Franco, que se escondeu em casa da madrinha do Jorge, e eu, apanhado sempre de surpresa, quando ela no final casava com ele. Sentia-me orgulhoso porque a mãe do meu melhor amigo conseguia tocar guitarra e cantar e sorrir e tudo ao mesmo tempo. Valia a pena atravessar aos domingos a estrada e almoçar na casa em frente à minha. E lembro-me disto assim. Pela cor. Alguns sons. Uma ou outra sensação. É importante um movimento desengonçado. Se me custa respirar é porque dói. Talvez porque aos vinte e quatro anos, envelheci. «Estás um homem feito, André». Talvez é assim: quando surge o adulto, surge a melancolia.


2. Esquecer o ponto final quando não há porque ao porquê

Às vezes a vida parece-me uma sombra ambulante. Uma entidade entre o nublado e o invisível. Algo que gosta de se passear com um ponteiro na mão. Às vezes, parece-me que o ponteiro brinca entre os meus lábios, separa-os três vezes. Eu de boca aberta, as pessoas preocupadas com moscas e o ponteiro: um, dois, três. Três vezes. Três palavras. «Vamos lá recapitular-me», disse o ponteiro da Vida logo no começo da manhã, quando reconheci o pai da Sílvia e do Jorge em casa deles. O Jorge apercebeu-se do meu espanto. «André, ele é o único que não se surpreende ao ver-se num espelho desta casa», disse ele. «Na verdade», continuou o Jorge, atirando-se ao puff azul que depois de roto permanece no quarto dele, «eles são os únicos que agem como se hoje fosse um dia perfeitamente normal». «Eles quem?», perguntei. «Os cotas, André.» «Não o esperava, mas é normal o teu pai estar cá em casa. É o casamento da filha dele. Daqui a umas horas ele entrega a Sílvia, ou lá como se diz, ao Francisco», disse eu. «Quando o vi na cozinha fiquei na dúvida se vestia o fato, se as luvas de boxe. Depois não decidi, fui ao quarto da minha mãe e disse-lhe: “O que é que aquele gajo procura no frigorífico?” A minha mãe assustou-se nos primeiros segundos ao pensar que tinha um intruso em casa, e eu disse: “Mãe, o pai… porque é que ele está cá em casa? “ “Não sei se te lembras mas a Sílvia casa hoje. E além de tua irmã é minha filha e isto pode ser um choque, mas eu não a fiz sozinha”, ironizou ela, e completou: “Jorge, fui eu que telefonei e pedi-lhe para vir.”» O Jorge calou-se, esticou-se ao comprido no puff, as pontas dos dedos a roçar na alcatifa do chão. «Nunca hás-de perdoar o teu pai pela relação extra-conjugal», disse eu. «Relação extra-conjugal, até parece uma coisa bonita. Traição. Cornos. André, o gajo encornou a minha mãe.» «Sabes», prosseguiu ele, voltando a sentar-se, «por isso é que perguntei: “Mãe, esqueceste o que ele fez?” Ela respondeu que não. “Mãe, se voltasses atrás perdoavas-lhe?” Ela repetiu que não. Finalmente perguntei: “Já não o amavas quando ele foi embora, pois não?” “Precisamente o contrário, Jorge. Por ele ser o amor da minha vida é que não aguentei ficar com ele”, respondeu ela. E agora, bem os viste André, passeiam-se ambos cá em casa como se hoje fosse só mais um dia da nossa vida comum.»


3. Nem tudo o que se exprime tem som

Depois do casório eu de fato e cerveja no café do bairro. O Jorge de fato e cerveja, e ela com sapatos salto agulha na mão a sentar na nossa mesa. «Estranho», foi a primeira palavra que a Eunice disse. Nevou cinza três vezes. Era um cinzeiro vazio, continuou transparente, onde ela batia com o indicador esguio no filtro do cigarro que era a sua maneira de concordar comigo. «Sim, André, as opções dos outros fazem-nos pensar nas nossas alternativas». Disse-me isto em código cruzar de olhos, desde o primeiro benzer desta tarde. Não sei quantas vezes me benzi no casamento da Sílvia. As pessoas levantavam-se à voz de comando do padre e eu a pensar que a cada erguer numa igreja associava-se um toque na testa, um no centro do peito e dois de cada lado. Nem sei quantas vezes os convidados optaram por obedecer em posição vertical ao general de batina, e, como alternativa, disfarcei os meus toques despropositados sacudindo nessas quantas vezes poeira invisível. Da gravata. Dos ombros do fato. Fingi comichão na testa. Depois parei de fingir e cocei-me com vontade, em várias partes do corpo. Quem se coça, provoca um auto contágio – lembro-me de pensar nisto ao som da voz enfadonha que leu o salmo fóssil sobre os deveres da mulher para com o marido. Talvez seja alergia. Alergia ao casamento. Isto é opção? Não, talvez genético. Ou talvez não, embora os meus pais fossem alérgicos ao casamento. Pelo menos, ao deles eram. A minha mãe era a menina bonita do bairro com depressões sucessivas que encantou o seu jovem psiquiatra – o atípico caso médico/paciente. Infelizmente, do caso ao casamento foi um mês. Foram oito meses da foto em que o padre careca casa os meus pais, à foto em que somos dois carecas (percebe-se facilmente que sou eu o da careca molhada com cm de altura, melhor de comprimento). E do casamento ao divórcio foram vinte e quatro anos, festejados com bolo de chocolate. Estávamos os três na sala e as velas ainda ardiam quando substituí o desejo do meu aniversário por um telegrama verbal. «Faculdade interrompida. Apetece-me viajar. Um amigo meu estuda arquitectura em Barcelona. Não o conhecem. Não peço dinheiro. Não há argumentos. É um facto.» No segundo seguinte soprei as velas. E embora um mês depois já morasse em Barcelona, tinha a casa de Lisboa em meu nome, pais separados em viagem algures na Europa (em países diferentes), como se eu, o filho, tivesse quebrado o cadeado do berço onde eles habitavam, decretando que tinham idade para andar.


4. Trincar a essência de túlipas

«A Sílvia tentou contactar o tio para vir ao casamento, mas o teu pai encontra-se algures…» «Jorge, o meu pai anda sempre “algures”», interrompeu a Eunice, pousando a chávena no pires. «No último telefonema, pareceu-me que ele falava comigo e simultaneamente engolia água. Consegui decifrar África e safari de sapos.» Sem combinação prévia eu e o Jorge demos um sôfrego gole nas cervejas, enquanto aumentávamos as rugas de expressão ao franzir olhos e testas. «Sim, safari de sapos. Sem comentários», avisou a Eunice ao acender outro cigarro. «Aliás, vocês são os únicos com espanto estampado na cara. Desde que ele se meteu no fotojornalismo com a reportagem dos esquimós, e tentou convencer a minha mãe em acompanhá-lo, lá em casa preparámo-nos para tudo e a minha registou-o em voz alta quando lhe disse: “Depois de ponderares educar a tua filha num iglu, comigo a pescar no gelo e talvez tu na caça de ursos, eu acredito em tudo”. Gosto do modo como a Eunice disfarça ser prática, simples e objectiva. Gosto que ela não o seja e demonstre que é. Gosto que ela goste do azul como 90% das pessoas que conheço. E que prefira túlipas, como 10% das mulheres que não conheço. «Qual será a percentagem de mulheres que tem na lista de objectivos, véu e grinalda?», questionou-se a Eunice, num murmúrio audível. «Prima, 200%», respondeu o Jorge piscando-me o olho. «Melhor, 199,9%, porque a Sílvia já riscou esse item da sua lista.» A Eunice e a Sílvia nunca foram as melhores amigas porque nunca chegaram a ser amigas. Há coisas que são como são: desde nascença uma é prima da outra e desde que comunicam entre si, sempre o fizeram em frequências diferentes. «A Sílvia não se atrasou porque é da praxe que a noiva o faça», disse a Eunice. «Ela varria o chão do quarto, de norte para sul e de sul para norte, com a cauda de tecido branco quando disse: “Eunice, a culpa é tua. Isto parece tudo uma feira de vaidades. Depois da igreja não quero festa nenhuma. Já nem sei se quero igreja e casamento e a culpa é da tua essência.” Estalava os dedos, tiritava os dentes e confundiu-me. Eu já não sabia qual o barulho dos ossos, qual o do esmalte. Ri-me. Muito. Ela não: “Ouvi-vos: a ti e ao meu irmão, deitados nesta cama. Contaste ao Jorge que não foste para Barcelona com o André porque faltava a essência. Eu sei lá se tenho essa coisa com o Francisco. Vou casar com ele e a minha certeza é a dúvida da essência. E a culpa é da tua conversa”, gritou a Sílvia. “Não te posso dar uma definição porque estas coisas ainda não existem em dicionários. E ainda bem. A essência não se toca, toca-nos. E isso é uma grande diferença”, disse eu. Ela riu-se. Muito. Eu não.» «E depois, Eunice?» – perguntei. «André, tu estavas lá. Ela casou-se e depois da igreja não houve festa nenhuma.» «Somos uns putos», brindou o Jorge. «Acho que não. Desde que a Sílvia anunciou o casamento, andamos todos agarrados ao passado com o verbo recordar na ponta da língua», disse eu.


5. Congelar as lágrimas


Lisboa cada vez mais distante. O Jorge a pagar cervejas, a dizer amanhã pagas tu. Um amanhã e um melhor amigo à distância de meses. Ele a desaparecer cada vez mais perto do fundo da rua principal do bairro. Só eu e ela no aeroporto. Centenas de pessoas invisíveis. Houve uma pergunta. Ela a morder com demasiada força o lábio inferior para não chorar. Ainda assim, o olhar demasiado brilhante. Barcelona ainda distante. Como que uma contagem decrescente. Há sempre uma pergunta: «Eunice, e a nossa história acaba aqui?» «As histórias da vida, enquanto houver vida, não têm ponto final»

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