quarta-feira, dezembro 15, 2004

Vida (Em) Comum (II)

1. Os intrusos nem sempre caiem pela chaminé, por vezes batem à porta

Assim que lhes abri a porta, senti o arrefecimento global na pele. Caminhámos pelo hall de entrada e eu espetei as pernas, literalmente, contra o cântaro com o azevinho da minha tia Madalena – que nesta altura do ano ganha direito em fazer as honras da casa – enquanto eles os três gesticulavam dos cotovelos aos pés, quase que saltitando no tapete vermelho como se (pareceu-me a mim) ali estivesse uma passadeira escarlate para a sua recepção e o facto de ser Natal, não fosse além de um pormenor interessante, nem de uma coincidência (in) feliz. Sem surpresa, aguardava a minha prima Sílvia de cintura enrolada no braço do recente noivo. Sem surpresa isto aconteceu. Mas ela trazer para a sua própria casa, a Sílvia a trazer pelo próprio braço o diabo para a ceia de Natal, encaixa-me no cérebro como uma definição de auge da ironia. Graças à Sílvia e ao seu novo apêndice chamado Francisco, tenho que me sentar numa mesa com dois metros de iguarias natalícias e agarrar o apetite, mesmo que no lado oposto encare o diabo; a personificar uma sexagenária de cabelo ruivo. É que esta mulher tem um sorriso irritantemente paralisado e exibe-o à minha frente na mesa. Ofusca-me com o casaco de cabedal vermelho muito plástico e apertado, e com a camisola negra de gola alta, preenchida a lantejoulas. Sei que as botas são igualmente negras e reluzentes, além de bicudas; pelo que tive o cuidado de caminhar o mais perto possível da parede do hall de entrada; evitando proximidade deste ser dantesco, com receio que me furasse os calcanhares. À vez disso, rocei-me na folhagem do cântaro de azevinho ao contornar o flanco esquerdo do bengaleiro. E ganhei uma colecção de arranhões para ambas as pernas. «Eunice, que venha o diabo e escolha», disse-me a minha mãe na cozinha, em êxtase com o cheiro da comida quando descobriu que a minha tia cozinhara bacalhau e peru para a consoada. Pois tive a certeza de que o diabo aceitou o convite assim que lhes abri a porta. E dei de caras com esta mulher. Depois sentámo-nos à mesa com ela num frente a frente comigo, num contínuo sorriso de olhos enrugados em mim e em todos. Não se incomoda que a encare olhos nos olhos. Mas, desvio o olhar em cada movimento de cada uma das suas mãos, em cada movimento evidencia-se o relevo de cada uma das suas veias; ora quando ela encaminhou a vela bordada no guardanapo, até ao colo, ora no agora; enquanto olho-a a analisar com a ponta do indicador o cabo trabalhado dos talheres. Não solta nem um monossílabo, quanto mais um “Feliz Natal”. Não baixou os olhos, nem uma única vez, para o prato onde no centro permanece o contorno de um anjo de harpa e asas asseadas. Porque quanto ao bacalhau e ao peru, a versão ruiva do diabo também ainda não lhes deu nem uma garfada.


2. A tradição ainda é o que era

Lembro-me da minha prima desde que me lembro dos meus ataques de tosse. Tossir é a minha forma de partilhar com a Sílvia, inclusive na sua ausência, os momentos hilariantes que ela me proporciona por palavras, actos ou nos meus pensamentos. No fundo, a tossidela é a gargalhada personalizada que tenho para com a Sílvia. Um pouco empoeirada, verdade. Conto um par de meses sem nos vermos. E ela ainda não nos apresentou a personagem da noite que colocou entre o nosso jantar de família. Como muitos dizem “a noite é ainda uma criança”, ou melhor, a criança ainda não nasceu nesta noite de Natal. Porque perto da meia-noite soa directamente da boca da minha mãe para os ouvidos da irmã dela: “Vai buscar o menino!” A tia Madalena ri-se porque o que ela sempre gostou foi do ambiente de festa. «Há Dezembros que prometo a mim mesma trocar a tradição à tua mãe», segredou-me ela no ano passado, «Talvez comprar um mini Pai Natal ou, quem sabe, um coelho de Páscoa júnior para que ela o coloque a dormir nas palhinhas. No Carnaval, se recordares bem, enfeitei o pinheiro de Natal porque me apeteceu. A tua mãe viu e indignou-se mas suportou-o e disse: “A casa é tua!”. Embora no caso do presépio, acredito que ela não manteria a frequência respiratória se eu me decidisse em cruzar os símbolos das épocas festivas.» Depois a tia Madalena benzeu-se três vezes à velocidade da luz, rematando a seco: «Uma simples partida para mim, um sacrilégio para ela. Porque para a tua mãe uma imagem é tudo, a todos os níveis.» Reconsidero todos os anos se estas duas são realmente irmãs. Ou talvez se sou eu a irmã do meu primo Jorge e não a Sílvia. E talvez a Sílvia possa ser a filha da minha mãe, deixando de a tratar por tia Eulália. Porque no retorno da tia Madalena à sala com o menino de loiça entre mãos, um menino de cuecas branca, a minha prima Sílvia encolhe duas dezenas de anos e canta em voz menina de seis. Começa a repetir o início da cantilena “Noite Feliz, Noite Feliz, Noite Feliz” porque nunca apreendeu o seguimento da letra. E eu tusso, claro que tusso enquanto a Sílvia encarna o trovador bem perto da minha mãe, ambas agachadas no presépio. É então colocado o menino entre a vaca e o burro, e ficam as duas a contemplá-lo como se à espera que a criança bolce. Depois a sala é um silêncio onde correspondo, olhos nos olhos, ao riso mudo do meu primo Jorge e da tia Madalena.


3. Mais vale uma tossidela na mão, do que duas a voar

O Natal tem uma sucessão de implicações com a própria palavra. A Sílvia voltou a casa para ocupar o seu lugar à mesa, na sala de jantar, por ser minha prima e porque é Natal. E no Natal as famílias reúnem-se em mesas. No Natal comemora-se o nascimento do Cristo que ano após ano não aumenta de tamanho. Logo, as palhas dos mil e um presépios onde está deitado – um excelente exemplo para o que é ser omnipresente – são eternamente feitas à sua medida. Enquanto eu, aos vinte e dois anos, se teimasse em dormitar ao menos uma perna no meu berço de madeira, arriscava-me a constipar cinco dedos do pé e tornozelo inclusive. Ou, a ser prática, estatelava-me no chão. De modo que, natal implica nascimento e ao nascer implica que já se tem família, o que implica partilhar a refeição natalícia com a pré-família da prima Sílvia. Entendo que o seu noivo Francisco, de cognome “O Lesma” – eu, Eunice, assumo as culpas desta designação – esteja a ocupar uma cadeira à mesa. Entendo não entender que ilustre desconhecida Sra. ruiva, de aspecto infernal, é esta. Por estranho que pareça, os dentes dela moveram-se e acabou de se dirigir ao Jorge – pediu que lhe servisse salada. O meu primo perguntou-lhe: “Alface, pepino e tomates?” “Menino, tomate não tem plural”, respondeu a mulher, sem deitar sobre a mesa o sorriso. O Jorge quebrou a pausa no tempo. “Desculpe, mas acho que ainda não fomos apresentados”, disse ele. A Sílvia interveio e respondeu ao irmão de olhar e boca arregalados: «Jorge, D. Beatriz de Castro d’Almeida», e prosseguiu, «a minha futura sogra ou “mamã” porque agora somos todos família». Sente-se uma nuvem cinzenta a pairar sobre a ceia, enquanto eu tusso bocadinhos de bacalhau para a cara imóvel do Jorge.

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