segunda-feira, fevereiro 28, 2005

À Sombra da Tua Sombra

Enquanto o telemóvel arrefece no lugar do morto, a noite diz-me estás atrasado, o pé no acelerador não cala o ponteiro; estás a exagerar, eu penso: o risco é um lugar-comum na vida, mas há quem não o pise e viva permanentemente do outro lado da linha, onde quer que seja, onde habita o risco. Eu pertenço a este grupo, desde que a conheci.

Rita; amiga de amigos meus, a história de sempre. De fora a metade anjo; caracóis largos e loiros desde as costas pálidas até à cintura, do tamanho do meu abraço. Pela frente duas amêndoas nos olhos e um íman no sorriso e quem me dera que não; sorriso adentro há um corpo de peças dispersas, de fobias escondidas, medos enterrados em álcool e desenterrados em tentativas de suicídio. Rita por dentro, a metade diabo.

Namoramos à distância e ao fim-de-semana quando ela vem a Lisboa, ou quando telefona-me e diz-me o que sou. “És a razão porque estou viva.” Telefona-me à noite, sempre de noite, porque a Rita acorda à noite e dorme de dia e “uma pessoa assim é incapaz de trabalhar”, diz-me a mãe dela. “Tu és tudo, mas agora não chega”, disse-me ao telemóvel a Rita, obrigando-me pela enésima vez a enfiar-me na escuridão, enésima madrugada adentro, a auto-estrada de sempre rumo ao Sul onde ela não dorme.

Lembro as discotecas no Verão com o magnetismo do sorriso da Rita; era o único que o tinha na mão mas não o único a vê-lo. Os rapazes pagam-lhe bebidas na mesma facilidade com que alguém apanha formigas com açúcar. Sorte a minha quando ela trazia-me copos e um beijo que ao final da noite era demasiado quente, embriagado. O álcool adormece-lhe os demónios algures entre as vísceras – Rita, metade diabo, no fundo do fundo da consciência. E a ressaca acorda Rita que acorda o anjo que não tem asas para o dia-a-dia. Lembro a primeira vez que adormecemos juntos numa cama, a garrafa de vodka no chão do meu quarto, no ar hálito a álcool – adormecemos de boca aberta e os nossos poros cuspiram-no durante o sono – e acordamos separados. A cama e eu, só, aflito. Ela no chão da sala, sentada de boca no gargalo de outra vodka que foi comprar logo que acordou. “Rita!” – gritos, da minha boca. Na cara dela duas lágrimas e meia, meia lágrima no indicador que passou no canto do olho antes de correr e abraçar-me e repetir-me o que sou: “És a razão porque estou viva.” Como repetiu-me hoje, ontem e anteontem quando finalmente cheguei e corri a casa dela – Rita ausente da sala, Rita fora do quarto, porta da casa de banho aberta, porta da varanda fechada – até encontrar no escuro da dispensa uma faca na mão dela, pronta a riscar a sangue o pulso. Como sempre, Rita no risco.

Enquanto mais estrada para trás, mais escuro me parece. O carro a guinchar puxas demais por mim, e a cabeça sofre insónia e dói-me qualquer coisa no lado esquerdo do peito, qualquer coisa que guincha também; puxas demais por mim, e penso: na maioria das vezes paramos porque nos obrigam, e se eu parar quando me obrigas a correr, Rita? E se eu parar? Dizes que te matas… “Tu és tudo, mas agora não chega.” O que é tudo? Uma palavra? Um risco? Uma razão? “És a razão porque estou viva.” Sou uma razão, desde que te conheci. Uma razão. Uma razão? E se for eu agora viciado no risco? E se eu parar?

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