segunda-feira, fevereiro 21, 2005

Estilhaços de Budapeste


Ao atravessar a Chain Bridge, entre Buda e Peste, tenho a sensação de não estar apenas como que em duas cidades diferentes, mas em dois países. Buda é calmo, histórico e respirável. Peste parece não saber como se virar. Transpira inquietude – uma cidade a querer ser cidade sem ter maturidade para isso. Ou talvez sou eu: ensopada em suor, sem trocos para a sexta garrafa de água do dia. Meio-dia, em ponto.

Budapeste, 24 de Agosto de 2004


Gostava de enviar uma carta a dizer-te que afinal o Danúbio tão azul e talvez até seja mas o dia é cinzento. Ontem chegámos a Budapeste a tempo do jantar e ao virar da esquina uma tasca, a conta: €3,85 a cada – o motivo pelo qual lemos aquele menu indecifrável ou húngaro (é a mesma coisa). Keleti soa-me a índio mas é o nome desta estação, suja e escura, deprimente o quanto baste enquanto o tempo faz birra e não passa. Aguardamos o comboio para Veneza às 17:15, o comboio ausente do placar das partidas, o J. ausente do banco ao lado do meu, eu sozinha, não, eu e duas mochilas, não eu sozinha e a janela partida na sala de espera.
Segundos atrás, o J. saiu daqui de mãos e sorriso no bolso, porque acabou-se o tabaco e porque sabe que se fugir daqui só de comboio, e isso lembra-lhe de que não faz amor há duas semanas, quando a M. ficou em Lisboa. Não me disse nada porque somos amigos e há coisas que sem palavras. Ainda de manhã, espreguicei-me à janela da pousada com a idosa do prédio em frente a mijar no jardim, acompanhada por um balde. Depois a mulher levantou-se, atirou com o balde de água à poça antes inexistente e regressou ao prédio e eu fui à casa de banho. A torneira do lavatório estragada, porque eu não acredito que aqui seja assim: quente na direcção da pinta azul e água fria na pinta vermelha. (Esvaziei o cantil e enchi-o abaixo da pinta vermelha.) No quarto três camas com três armários e três secretárias. No tecto estrelas fluorescentes. Sete. Na prateleira sabonetes brancos, rectangulares e dois rolos de papel higiénico. Na casa de banho nem papel, só água.
Comecei esta carta num café que ontem à noite jurei ser o Moulin Rouge em Budapeste; as cortinas dos vidros vestiam-se de vermelho, ladeadas por cartoons luminosos de mulheres com liga em pernas de metro e meio e com o arco-íris como maquilhagem. Hoje desaparecera tudo quando o empregado trouxe-me a sexta garrafa de água e um martini para o J. Era meio-dia, e disse-nos qualquer coisa que não interpretei como obrigado nem aqui tem, pela quantidade de palavras. Não sei se importante porque era húngaro. Na mesa ao lado um casal que reconheci da pousada. Não falavam um com o outro mas franceses. Ela um nariz empinado e olhos esbugalhados, lendo o porquê das vacinas da gripe não serem 100% eficazes. Ele consultou gráficos, coloridos, sem legendas. Talvez a bolsa. Ou a adesão dos húngaros ao inglês: um dos gráficos desenhava a linha pouco acima do zero. Na pousada, nem a mulher da recepção a falar inglês. Uma cantora lírica para mim; abastada em banha, cabelo apanhado no topo da cabeça e vestes entre o cigano e o árabe. Uma carreira que lhe passou ao lado ao pendurar nas narinas uma argola: visitámos a Opera House onde garanto não actuarem suínos.
Eram 10h e nós em Buda. (A pousada na Peste.) Eu e o J. de pensamento no Castle District – ruas apinhadas de estátuas, o Danúbio lá em baixo e maior do que nunca, uma ave de ferro em liberdade num telhado – e corpos estancados à saída do metro, o revisor (acreditar que revisor) a estabelecer uma multa de 2000 forints porque o nosso bilhete de repente inválido. A comunicação gestual. Falasse russo ou chinês ou uivos, para mim igual. Por isso diverte-me aceitar panfletos na rua, nos quais entendo patavina e números de telefone e descontos em lojas. (Budapeste está em saldos entre 40% e 80%.) Afinal o Danúbio tão azul em Buda. Depois o regresso, sem pedir licença aos leões da Chain Bridge. (A pousada na Peste.) E afinal o Danúbio não tão azul na Peste, uma banda sonora de sirenes de ambulâncias e polícia na cidade, avenidas com passadeiras de 10m e atravessá-las antes do semáforo vermelho, taxistas ou halterofilistas (acreditar que taxistas) com ausência de cabelo ou rapado, a cumprimentarem-se de abraço e beijo e qualquer coisa que não calor, se fosse Itália, se fosse a Grécia, ainda no Leste. Ainda no metro uma família chinesa a cantar ópera e qualquer coisa de muito grave (acreditar que grave era o tom das notas), qualquer coisa sem sorrisos nem mafiosos, se fosse Itália (acreditar que o comboio há-de chegar e partir e Veneza), qualquer coisa entre passeios no lusco-fusco, talvez o toxicodependente orgulhoso exibindo-nos dedo a dedo, as seringas invisíveis mas as marcas não, talvez a multa não paga no metro, talvez a mulher da recepção de rompante na cozinha onde não havia alho, e o J. a não concordar que cantora lírica mas vampira, a mulher extasiada com o cantil (esquecer que abaixo da pinta vermelha água fria), enquanto apalpava a almofada térmica – «Hot and cold?» – num inglês embrulhado, e o J. a concordar que é ideal para manter a temperatura do sangue.
Gostava de enviar uma carta a dizer-te que afinal o Danúbio tão azul e consegue-o ser, mas a janela da estação tão alta e não o vejo. J. senta-se novamente a meu lado e dá-me café num copo semelhante a esferovite. A gare só comboios e nenhum o nosso. Só não fui aos correios porque falta-me apenas lembrar para quem estou eu a escrever. No entretanto, eu e o J. olhamos em frente a esperança de voar daqui; duas pombas conseguem atravessar a janela partida da sala de espera.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com