terça-feira, maio 10, 2005

Praia Formosa


O amigo sabia que ele nem sempre fora assim. O sol afogava-se nas costas do amigo onde estava o horizonte, mas o amigo não retirou os óculos de sol e ele encarou-se em duas lentes espelhadas: careca e gordo. Um deles acendeu primeiro o cigarro e os dois cafés arrefeciam com a brisa de final de tarde de Abril. As ondas espumavam de alívio porque os últimos veraneantes antecipados lhes voltavam costas, ao subirem a meia dúzia de tábuas que improvisavam degraus de acesso à praia. Uns metiam-se a si e à família, os namorados ou o cão dentro do carro, e nenhum grão de areia era transportado até casa porque a Praia Formosa é uma característica praia da Madeira onde o areal é negro, os grãos são tamanho xxl e os corpos estendem-se em toalhas que se estendem sobre calhaus. Houve um grupo que juntou três mesas para acumular doses de lapas e cervejas e um chinfrim mesmo ao lado da mesa dos dois amigos. Eles conheciam dois ou três rapazes daquele ajuntamento e sabiam que era assim. Eles também eram assim. Mas aquela era uma das tardes que o amigo careca coleccionava, tardes deprimidas e melancólicas, e ambos ignoraram a mesa ao lado com um tudo bem?, seco.

Quando andavam no secundário o amigo que ainda era alto e moreno, tinha-lhe roubado uma futura namorada que não namorou, uns beijinhos e umas voltinhas e coisa e tal, como tempos depois contara-lhe. O amigo já nessa altura sabia do seu Cabo das Tormentas: as mulheres. Ele usava grande fatia do seu tempo amoroso no pensamento; a pensar num sorriso, em cheiros, um toque, qual poeta enclausurado em amores platónicos; a não ouvir uma gargalhada feminina, sem inspirar um perfume de mulher, sem expirar sobre uma pele de mulher. O amigo jamais o compreenderia, fosse ele agora careca e gordo, o amigo sabia que nessa altura ele não só era magro, cabeludo, como os cabelos eram ziguezagues loiros e compridos e usava-os amarrados num elástico largo, provocando vertigens às raparigas que se cruzavam com ele nas ruas do Funchal, na sua adolescência. Não foi à toa que lhe apelidaram de “Bom Jaca” nesses tempos, nos tempos em que essas raparigas faziam-se mel sintonizadas na MTV, enquanto um moço loiro bem parecido sofria o drama do videoclip em que os Bon Jovi repetiam Always, realmente quase que para sempre. Desde esses tempos, ele uma autêntica estampa, sofria pela mulher da sua vida, ele que apaixona-se e concentra-se sempre numa única mulher, sofria pelo seu grande amor. E o amigo moreno e outros amigos pouco ou nada chateados e todos mais borbulhentos que ele; ajeitavam os ombros para consolo das raparigas com ziguezagues loiros tatuados no coração.

Os dois amigos, o moreno e o ex-loiro, refrescavam a memória na esplanada da Praia Formosa com esta história e o pano de fundo era um céu às manchas laranja e violeta. Lembraram-se do final desse primeiro grande amor. Ele suspirara-a durante três anos, até que finalmente foram namorados por três meses exactos. Uma proporção interessante. Um final previsto por todos um dia, um domingo fatídico apenas para ele e para a rosa despida de pétalas à porta da Sé do Funchal. Ela usaria saia pelos joelhos e os sapatos da missa, porque a mãe que era de idade avançada dizia-lhe não se visita a Casa de Deus com qualquer trapo, e depois ela escapuliria a meio da cerimónia para fumar um cigarro e ele conhecia-a e esperou-a nas escadas da Sé. Do primeiro degrau, olhou-o com cara de poucos amigos. Ele sorriu confiante. Não, não se esquecera que naquele domingo faziam três meses de namoro e galgou a escada para espetar uma rosa vermelha em frente ao nariz dela, vermelho também. O vermelho da rosa ou do nariz espalhou-se na cara dela, e quando ela disse entrega a rosa à tua namorada, tinha a boca mais vermelha do que o normal. Ele conhecia-a e ripostou ou és tu ou não tenho namorada. Aí, o vermelho fez-se vermelhão e ela só lhe disse como queiras, antes de martelar a cabeça dele que não era careca, com as pétalas da rosa desfolhada que atirou ao chão no seu regresso à igreja. Ele não percebeu, nem ao anoitecer quando o mar gemia aos calhaus e o amigo moreno tirou os óculos de sol, encolhendo os ombros. Ambos continuavam sem perceber o que correra mal ali, no segundo, terceiro ou quarto grande amor dele. Passou a mão pela careca ao dizer é karma, ao recordar a última frase dita pelo seu último amor ao telemóvel, naquela mesma praia. As férias eram de Verão e a namorada de Évora, de onde ele frequentava o curso. Tentou falar com ela a primeira semana inteira de Agosto. Durante Julho não houvera falhas de comunicação entre Madeira e Alentejo, entre aqueles dois telemóveis. De repente, ela não atendia-lhe as chamadas, não respondia às mensagens e os amigos alentejanos juravam que ela estava viva e de saúde. Até que noutro fatídico dia, por ideia do amigo moreno que novamente estava com ele, sentados ao sol nos calhaus pontuavam de 0 a 10 os biquinis ambulantes, telefonou à namorada com o número não identificado e recebeu um estou?, familiar. Imediatamente foi identificado.
- Onde estás? – perguntou ela.
- Tu sabes, na Madeira, na praia… Porque é que tu…
- Está tudo acabado. Ainda não percebeste? Aproveita e atira um calhau à tua cabeça! – Foi a frase de despedida da sua ex-namorada.

Não partilhou estes pensamentos com o amigo. O amigo sabia da história e também da sua nova paixão e do facto de esta partilhar com ele o interesse pelo esoterismo, assunto tabu para as anteriores. Isto era o importante. Aconselhado por ela de manhã comprara um livro, páginas de vidas passadas, anjos da guarda, hipnoses e o título faça você mesmo a sua regressão no CD bónus. Iria para casa, colocaria na aparelhagem o CD e o quarto à luz de vela e sombras. Desta vez, o desafio era ir além da aproximação mental da sua mais recente musa, era hipnotizar-se, regredir, procurar-se no ponto fulcral de uma vida passada, no qual o passado lhe profetizara tal martírio com as mulheres, compreender e fazer as pazes. Isto sempre foi o importante. Depois é só bater três palmas e abrir os olhos e já está, ouviu o amigo moreno de sobrolho arrebitado.

Os dois amigos arrancaram numa nuvem de terra batida já a praia estava deserta, o estacionamento ficou deserto, um deles acendeu o cigarro e disse hoje queres resolver o teu problema ao som das baleias do CD, enquanto o outro disse hoje não, depois desta conversa no café estou demasiado excitado.

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