Cais do Funchal
Há três espécies de homens…
Os vivos, os mortos e os que andam no mar
Platão 427 – 347 AC
Assemelhavam-se a formigas de tamanho humano. Ao longe; eram demasiados e demasiado minúsculos mas visíveis. Um a um haviam descido a passagem metálica, e, quando a atravessaram, a margem entre o navio-escola e o cimento do porto temperado com sal manteve o desequilíbrio; até que se contou sobre terra firme o último par de pés. Tudo sapatos pomposos. Brancos como o uniforme, ou (seriam?) mais negros que o tecido do céu, que foi uma noite de lua. Garanto-me que não estavam descalços, que não olhei para os pés, não sei a cor dos sapatos. Na verdade nem os vi a caminhar de sobre o oceano. Mas o formigueiro estava lá, o navio esteve lá desde a hora do jantar, a hora em que as amarras deram um abraço em nó à ilha e as formigas brancas, uma fileira em clones de fardas, traçaram um azimute que lhes atracou os pés na Marina do Funchal. Convence-te a ti própria: não olhaste os pés. Vi carapaças de marinheiro em cada um, vi mãos de pele, imaginei-as calçadas com as luvas esquecidas, brancas, não apertadas à carne e aos dedos, luvas de palhaços numa arena de circo, luvas brancas e enormes e a baterem palmas, por momentos vi marinheiros com mãos de palhaço e com isso acho que ri, convence-te: no momento isso fez-te rir dos olhos – Aconteceu. Eles aconteceram. Aconteceu o «Boa noite» antes ou depois dos «Olá». «Podemos nos sentar?» foi quando as fardas brancas já ocupavam as cadeiras, e os panamás esquecidos e invisíveis como as luvas, via-os já há muito numa fileira em cima das mesas como eles em sentido numa formatura, como auréolas nas toalhas de papel. Nas apresentações só alcunhas e sobrenomes. Nem um nome próprio. Depois aconteceu desmancharem-se as bocas das minhas amigas, desmanchar a minha quando lhes sorri (ou quando rias dos palhaços?) e tudo aconteceu na bênção do Santinho – a esplanada mais barulhenta esta noite na Marina. Porque agruparam-se quatro mesas, pares de lábios e dentes a mais; roxos, tatuados por sangria.
Entre os jarros de vidro vazio abandonados por miúdas e marinheiros, e o exército que pisa uvas na minha cabeça, a ligação faz-se pela sangria. Ressacas; convence-te: há um fio de sol a espetar-se entre as tuas pálpebras, a sangria dissolvida nos teus fluidos, tal e qual. Puxa um cigarro que te há-de saber a álcool, qualquer coisa no agora sabe-me a álcool, se me mordesse juro que me saberia a álcool. Mas falta-me força. Se uma das minhas amigas aqui estivesse pedia-lhe que me trincasse, diria «Não dói porque falta-me força para sentir dor». «Morde-me e diz-me se o meu sabor é álcool», pediria a qualquer uma delas. Mas nem uma aqui. Elas as três algures na discoteca, num pequeno-almoço fora de horas na Zona Velha, decotes fora do sítio e olhos borrados no banco detrás de um táxi e o taxista puxa um cigarro, tal como eu. As três amigas que conheço de paradeiro desconhecido e uma que não reconheço aqui. Repete: és tu aqui; eu aqui. Num banco no Cais. Na extremidade onde o mar salta para o colo do Cais. A Avenida do Mar ao fundo, a muitos metros das minhas costas, a conseguir adivinhar os primeiros autocarros dos Horários do Funchal. Ou a carrinha do Diário de Notícias perto do quiosque verde e mínimo da avenida. Ou o muro da avenida onde as gaivotas ainda sem medo, de voo pousado, fincam patas no muro que é fronteira entre o território terra e o território mar. Ou isso. Ou nada. Ou é esta cabeça submersa em sangria. Esta cabeça não me é familiar. Procura por entre o exército em vindimas nessa cabeça o fundo da avenida, à esquerda, entra pela calçada negra, não és turista. Sei pelo cheiro a Zona Velha e hei-de encontrar uma rotina familiar; os velhotes de sempre, mãos rugosas com o baralho de cartas e a bisca como sempre, no banco de sempre. Se lá fosses «Lá estão», dirias, dizia. Eles são no banco velho, eu sou no banco do Cais. É o limbo da ressaca que desmente mas convenço-me: se o mundo à tua volta é real, tu és real. À esquerda do fundo da avenida existem os velhotes e o banco. Longe da vista, próximos no cenário: eu e outro banco. Porque agruparam-se quatro mesas, as raparigas e as formigas humanas; uma fileira delas, um sentou aqui.
Marco perto de mim impressões digitais na tinta verde gasta do banco, a ponta do indicador desenha o contorno do rabo de marinheiro que sentou aqui. Aconteceu? Ele aconteceu? Aconteceu «Não vou dar-te um beijo» quando de repente o zoom da cara dele era o meu campo de visão. «E a tua boca também serve para falar?», perguntou-me e já a sangria turvava-me a língua e não respondi. Sentámos? Sentou-se. Perto dele sentou-se um autómato. Aqui. Era eu. Sou eu. É uma lógica alcoolizada que tens como memória, como acreditar. Deixo de esconder a cara entre mãos e ponho os dedos a correr uns contra os outros; tremem como eu. O puzzle da noite soprou-o deus Baco. Perdi o rasto das outras formigas, quando? Quando encolheram as minhas amigas tanto, para já não as ver? E quando deixei de acompanhar o que ele me dizia neste banco, pensava «Não conheço este gajo que saiu à noite vestido de marinheiro», enquanto ele fazia pesos com uma garrafa embrulhada em papel de padaria; e ora o marinheiro, ora uma imagem de vagabundo nova-iorquino. E como acreditar? Há este banco, o Cais deserto contigo mas a Madeira não é ilha deserta. «As pessoas não ficam loucas por uma piela», explico-me em voz alta. «Temporariamente», respondo-me, «como agora». É tudo tão irreal e tão nítido: o medo. Fixa outro fio de sol a desenrolar-se das nuvens. Outra imagem dele, a última: um marinheiro mudo de aceno mudo, de costas em “v” enterrando-se nas escadas do Cais, de rota traçada onde o porto à hora do jantar recebeu um abraço em nó. Como acreditar que não um fantasma, não ouvi passos, não olhei para os pés. Apenas o medo gritou-me: «O que é que aconteceu?» «Em princípio, não sei», responderam as escadas, só pode ter sido ele, tão típico de marinheiro, como acreditar?
Ergue os olhos à bola amarela que descalça o horizonte. Menos ao fundo, o muro onde três raparigas parecem pretas em contraste com o amarelo. Cada uma grita mais que a outra enquanto correm o muro e enxotam gaivotas, e, quando param, dançam, e quando dançam parecem ainda mais pretas. Tudo festa. As bocas delas voltadas para o mar, ou para o navio de assobio medonho que lhes dá e leva formigas com acenos de panamás, que são auréolas riscando o céu. Em linha curva quase corro. Agarro-me ao Cais neste ferro oxidado; nesta vedação olho-os de frente mais perto, menos formigas, mais humanos, e por baixo espreita-me o mar. E se não fosse a certeza de que estão homens a andar no mar e de que as minhas amigas são pretas ao nascer do sol, talvez aí compreendesse, compreendia; o porquê da lágrima de pierrô cá em cima, lá em baixo quando espreito-me no mar.
Os vivos, os mortos e os que andam no mar
Platão 427 – 347 AC
Assemelhavam-se a formigas de tamanho humano. Ao longe; eram demasiados e demasiado minúsculos mas visíveis. Um a um haviam descido a passagem metálica, e, quando a atravessaram, a margem entre o navio-escola e o cimento do porto temperado com sal manteve o desequilíbrio; até que se contou sobre terra firme o último par de pés. Tudo sapatos pomposos. Brancos como o uniforme, ou (seriam?) mais negros que o tecido do céu, que foi uma noite de lua. Garanto-me que não estavam descalços, que não olhei para os pés, não sei a cor dos sapatos. Na verdade nem os vi a caminhar de sobre o oceano. Mas o formigueiro estava lá, o navio esteve lá desde a hora do jantar, a hora em que as amarras deram um abraço em nó à ilha e as formigas brancas, uma fileira em clones de fardas, traçaram um azimute que lhes atracou os pés na Marina do Funchal. Convence-te a ti própria: não olhaste os pés. Vi carapaças de marinheiro em cada um, vi mãos de pele, imaginei-as calçadas com as luvas esquecidas, brancas, não apertadas à carne e aos dedos, luvas de palhaços numa arena de circo, luvas brancas e enormes e a baterem palmas, por momentos vi marinheiros com mãos de palhaço e com isso acho que ri, convence-te: no momento isso fez-te rir dos olhos – Aconteceu. Eles aconteceram. Aconteceu o «Boa noite» antes ou depois dos «Olá». «Podemos nos sentar?» foi quando as fardas brancas já ocupavam as cadeiras, e os panamás esquecidos e invisíveis como as luvas, via-os já há muito numa fileira em cima das mesas como eles em sentido numa formatura, como auréolas nas toalhas de papel. Nas apresentações só alcunhas e sobrenomes. Nem um nome próprio. Depois aconteceu desmancharem-se as bocas das minhas amigas, desmanchar a minha quando lhes sorri (ou quando rias dos palhaços?) e tudo aconteceu na bênção do Santinho – a esplanada mais barulhenta esta noite na Marina. Porque agruparam-se quatro mesas, pares de lábios e dentes a mais; roxos, tatuados por sangria.
Entre os jarros de vidro vazio abandonados por miúdas e marinheiros, e o exército que pisa uvas na minha cabeça, a ligação faz-se pela sangria. Ressacas; convence-te: há um fio de sol a espetar-se entre as tuas pálpebras, a sangria dissolvida nos teus fluidos, tal e qual. Puxa um cigarro que te há-de saber a álcool, qualquer coisa no agora sabe-me a álcool, se me mordesse juro que me saberia a álcool. Mas falta-me força. Se uma das minhas amigas aqui estivesse pedia-lhe que me trincasse, diria «Não dói porque falta-me força para sentir dor». «Morde-me e diz-me se o meu sabor é álcool», pediria a qualquer uma delas. Mas nem uma aqui. Elas as três algures na discoteca, num pequeno-almoço fora de horas na Zona Velha, decotes fora do sítio e olhos borrados no banco detrás de um táxi e o taxista puxa um cigarro, tal como eu. As três amigas que conheço de paradeiro desconhecido e uma que não reconheço aqui. Repete: és tu aqui; eu aqui. Num banco no Cais. Na extremidade onde o mar salta para o colo do Cais. A Avenida do Mar ao fundo, a muitos metros das minhas costas, a conseguir adivinhar os primeiros autocarros dos Horários do Funchal. Ou a carrinha do Diário de Notícias perto do quiosque verde e mínimo da avenida. Ou o muro da avenida onde as gaivotas ainda sem medo, de voo pousado, fincam patas no muro que é fronteira entre o território terra e o território mar. Ou isso. Ou nada. Ou é esta cabeça submersa em sangria. Esta cabeça não me é familiar. Procura por entre o exército em vindimas nessa cabeça o fundo da avenida, à esquerda, entra pela calçada negra, não és turista. Sei pelo cheiro a Zona Velha e hei-de encontrar uma rotina familiar; os velhotes de sempre, mãos rugosas com o baralho de cartas e a bisca como sempre, no banco de sempre. Se lá fosses «Lá estão», dirias, dizia. Eles são no banco velho, eu sou no banco do Cais. É o limbo da ressaca que desmente mas convenço-me: se o mundo à tua volta é real, tu és real. À esquerda do fundo da avenida existem os velhotes e o banco. Longe da vista, próximos no cenário: eu e outro banco. Porque agruparam-se quatro mesas, as raparigas e as formigas humanas; uma fileira delas, um sentou aqui.
Marco perto de mim impressões digitais na tinta verde gasta do banco, a ponta do indicador desenha o contorno do rabo de marinheiro que sentou aqui. Aconteceu? Ele aconteceu? Aconteceu «Não vou dar-te um beijo» quando de repente o zoom da cara dele era o meu campo de visão. «E a tua boca também serve para falar?», perguntou-me e já a sangria turvava-me a língua e não respondi. Sentámos? Sentou-se. Perto dele sentou-se um autómato. Aqui. Era eu. Sou eu. É uma lógica alcoolizada que tens como memória, como acreditar. Deixo de esconder a cara entre mãos e ponho os dedos a correr uns contra os outros; tremem como eu. O puzzle da noite soprou-o deus Baco. Perdi o rasto das outras formigas, quando? Quando encolheram as minhas amigas tanto, para já não as ver? E quando deixei de acompanhar o que ele me dizia neste banco, pensava «Não conheço este gajo que saiu à noite vestido de marinheiro», enquanto ele fazia pesos com uma garrafa embrulhada em papel de padaria; e ora o marinheiro, ora uma imagem de vagabundo nova-iorquino. E como acreditar? Há este banco, o Cais deserto contigo mas a Madeira não é ilha deserta. «As pessoas não ficam loucas por uma piela», explico-me em voz alta. «Temporariamente», respondo-me, «como agora». É tudo tão irreal e tão nítido: o medo. Fixa outro fio de sol a desenrolar-se das nuvens. Outra imagem dele, a última: um marinheiro mudo de aceno mudo, de costas em “v” enterrando-se nas escadas do Cais, de rota traçada onde o porto à hora do jantar recebeu um abraço em nó. Como acreditar que não um fantasma, não ouvi passos, não olhei para os pés. Apenas o medo gritou-me: «O que é que aconteceu?» «Em princípio, não sei», responderam as escadas, só pode ter sido ele, tão típico de marinheiro, como acreditar?
Ergue os olhos à bola amarela que descalça o horizonte. Menos ao fundo, o muro onde três raparigas parecem pretas em contraste com o amarelo. Cada uma grita mais que a outra enquanto correm o muro e enxotam gaivotas, e, quando param, dançam, e quando dançam parecem ainda mais pretas. Tudo festa. As bocas delas voltadas para o mar, ou para o navio de assobio medonho que lhes dá e leva formigas com acenos de panamás, que são auréolas riscando o céu. Em linha curva quase corro. Agarro-me ao Cais neste ferro oxidado; nesta vedação olho-os de frente mais perto, menos formigas, mais humanos, e por baixo espreita-me o mar. E se não fosse a certeza de que estão homens a andar no mar e de que as minhas amigas são pretas ao nascer do sol, talvez aí compreendesse, compreendia; o porquê da lágrima de pierrô cá em cima, lá em baixo quando espreito-me no mar.
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