quinta-feira, setembro 07, 2006

Inter Rail


Van Goh, Matisse, Hemingway, Chatwin, Luis Sepúlveda, D. Coelho: adquiriram um Moleskine. Outros anónimos também, possivelmente.

Ciudad Rodrigo (mais estação menos estação), 10 de Agosto de 2004








Abres os olhos e outra vez aquela sensação de tentar perceber onde estás. Endireita as costas, espreguiça-te e boceja à vontade. A pouco e pouco notas a cabine do comboio cada vez mais nítida. Espantas-te ao descobrir mais uma pessoa aí contigo: adormeceste à saída de Santa Apolónia, na janela o dia perdeu-te de vista, mais estação menos estação, possivelmente ela apanhou o comboio em Ciudad Rodrigo.
A mochila tão grande como a tua. A rapariga plantada no banco em frente. O Bob Marley da t-shirt amarrotado até aos lábios, enquanto os lábios dela (parecidos com os teus) húmidos de lágrimas, a beijar de certeza segunda ou terceira vez uma carta: o papel perfumado não engana, o envelope do remetente “Amorzinho” não engana, o título “O amor é fodido” no livro a seu lado não engana.
Se olhares as terras espanholas pelo vidro, sempre finges não perceber o que se passa. Deixa estar se o choro agasalha ou asfixia. Deixa estar se o vermelho ganha terreno ao branco dos olhos dela (castanhos como os teus). Isso. Continua a escrever sem pensar que a mão escreve por si. Não, não mordas o lábio. Não te rias. Deixa estar se o amor é fodido ou o sexo é amoroso. Não te rias. Não te rias porque ela diz:
- Enquanto dormias fui mijar e quando o comboio parou fiquei com as calças na mão.
Há dois anos atrás o comboio também parou, contigo na casa de banho a reler o aviso da porta: “Não utilizar durante as paragens nas estações”. Logo, não mordas o lábio nem revires os olhos porque ela diz:
- Fiquei naquela; mijo, não mijo.
Sorri calma. Isso. Ainda agora passaste as pálpebras pelas brasas. Ainda assim estás mais arrebitada que ela – realmente parecida contigo. Sem vírgula cicatrizada no topo da orelha, por outro lado, o cabelo comprido também, quase negro – realmente faz lembrar: que susto de semelhança! Assusta. Assusta, não assusta? Assusta-te.
Freneticamente começas a procurar o teu bilhete de identidade escondido (de propósito), entre as páginas do moleskine. No propósito de durante um mês não provares quem és (apeteceu-te). A tua sorte é que o revisor não falha, mas tarda:
- Identificação, por favor.
Ouviste? O revisor atrasou-se e se for como carteiro bate sempre duas vezes:
- Identificação, por favor.
- Identificação, por favor.
Por isso relaxa. O homem há-de aparecer. Até lá hás-de encontrar o documento. Pára com isso: ainda rasgas páginas e não há cola a dar. Que estúpido pânico, só por no agora teres outra pessoa aí contigo (realmente parecidas, podiam confundir).
Acalmas-te com um raciocínio simples: duas raparigas, em que tu és tu, mesmo sem bilhete de identidade. (Que estúpida ideia, pensares em anotar o número do dela.) Logo amanhece e preocupa-te continuar o itinerário com um retalho marginal em ti: culpa-te o acto de esconder o bilhete de identidade. Apeteceu-te esquecer de ti. Ora bem, a ela também: adormeceu sem te dar boa noite.

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