segunda-feira, outubro 17, 2005

Não me atires da cama que eu não sou de borracha

Para o Duarte, pelos pormenores verídicos
(tudo o mais fica entre nós)


“O amor é a causa do movimento da natureza.”
Platão


Pára de gritar por mim. A tua boca abre, fecha, abre e fecha como um pêndulo a seduzir-me os olhos. Sou incapaz de te perceber além da leitura dos lábios, de me perceber de joelhos na carpete, ou o porquê de tu continuares em pé, nas alturas, lembrando uma deusa apocalíptica, a lançar-me relâmpagos do fundo da garganta.

(“Tiago! Tiago!”)

Ouvir-te berrar-me é uma constante. O casamento é feito de constantes. Chegar a casa atrasado para jantar e ver-te amuada. Ser noite de sábado com jogo de futebol e depois entrar no quarto onde descubro-te adormecida há que tempos, porque não fomos ao cinema. Fazer amor, dizer amor, perdoar amor.

(“Tiago! Tiago!”)

De certo que chamas por mim, porque prometeste aconteça o que acontecer, fico contigo. Além disso, hoje é sábado, não vi o jogo e fomos ao cinema. Ao menos tinhas isso em conta, e paravas de gritar. Nem que seja por eu estar no centro da sala ajoelhado a teus pés. Nem que fosse por pena. Sentir pena não é assim tão mau. A pena é filha bastarda da paixão – As coisas que me passam pela cabeça, quando algo não está bem, e nem consigo falar.

(“Reage!”)

O meu nome é Tiago, tenho 33 anos, sou casado e pai há 2 meses. Estamos no ano de 2005. Esta noite o meu Benfica ganhou nas Antas, não assisti ao feito, porque acabei de vir do cinema com a minha mulher. Sei quem sou, estou em minha casa, não consigo falar e a minha mulher não pára de gritar por mim.

(“Tiago! Tiago!”)

Não sei como, mas há-de ficar tudo bem, mulher. Não me olhes assim nem assado. Não olhaste para mim, quando te disse que a Alice não vinha tomar conta do menino, tinha planos para o fim-de-semana, retocavas-te no espelho do hall de entrada, agarraste as chaves do carro e respondeste que era o tempo de um filme, como ir à esquina e voltar, o bebé de mãos dadas com o sono, a rottweiler a tomar conta da casa. E há esquinas longínquas. Como entrar em casa e deparar-me com um rasto de sangue. A cadela que ladrava na cozinha. O bebé que não chorava. Arrefeci num de repente de noite de Outubro. O bebé que não chorava. Culpar a cadela, solta, a ladrar. A arma da caça tão perto da cozinha, onde a preta da rottweiler não se confundiu com o escuro, onde lhe acertei de um só tiro, o último latido, gemido, adeus. O medo de ir ao berço, de te saber junto ao berço, medo de te ouvir em choro, desespero, adeus.

(“Tiago! Tiago!”)

Por favor, pára de gritar por mim. Já cheguei à sala, ajoelhei-me na carpete, e de errado vejo o mesmo que tu: um homem que não pertence à nossa casa, uma meia na cara mas os olhos abertos e a jugular desfeita, com a assinatura de dentes de cão. Podias-te acalmar, aproveitar o embalo de barco dos teus braços, que dás ao menino afinal acordado, que, me pergunto como, ainda não chorou. Eu nem consigo falar. Deixa-me recuperar o juízo. Perceber que amanhã o bebé há-de chorar, a cadela jamais ladrará, as mãos que te acordarão são minhas. As mãos que podem ser membros soldados de um cérebro general demente. Que a minha natureza pode ser esta.

Invocar o amor, recriar o amor, não perceber o amor.

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