quarta-feira, setembro 14, 2005

Como Final um Arco-íris Em Amesterdão

1. Vermelho
No dia 3 de um mês que não devia chover, de cabeças ao alto Regina e Luís olham um céu pardacento na cor e no sentimento. Entre as cabeças deles, uma outra abana negativamente a confirmação de que o bem-vindo de um céu assim só pode ser chuva. A minha cabeça.


2. Laranja

Na saída da Centraal Station, pinga na página 727 da minha bíblia de viagens onde procuro a pousada, e descubro Amesterdão como um labirinto de circunferências, como se uma gota da tinta de impressão caída no centro da página tivesse o mesmo efeito que lançar verticalmente uma pedra num lago. Amesterdão é um círculo defeituoso de canais concêntricos e Regina ri-se sem ouvir o que penso, enquanto Luís pontapeia uma garrafa de água vazia contra a parede da estação. No momento, os nossos três olhares apontados ao exterior da garrafa amolgado e o crepitar da chuva no plástico, o plástico escorrendo água como nós. O céu uma amálgama de nuvens cinzentas, a ausência de sombras. O vapor das nossas bocas. O fumo imperceptível do cigarro de Regina. Um dia triste. Interiorizo pela primeira vez a alta taxa de suicídio da Holanda. A cidade é um filme a preto e branco com grão porque há ruído, e nós personagens mudos em diálogo. Risco a legenda do mapa: Amsterdam. Na página 727, de hoje em diante, mora a Cidade Sem Azul.


3. Amarelo
A entrada do Bob’s Youth Hostel é digna de um submundo. Três a quatro degraus remetem-nos para um nível inferior à rua onde surge a sala de convívio. Dois sofás pretos almofadados encostados à parede da direita. Mesas que me dão pelas ancas em frente aos sofás. À esquerda, outras cinco mesas. Cada tampo de mesa é um quadrado perfeito de madeira lascada, todos os sete estão autografados por gente comum desconhecida – Becky was here. Dank u wel, Bob. To bier or not to beer, Jean from Switzerland. Europe sucks, so sick my duck – Alex. I forgot my umbrella, Mary, Edinburgh – A vantagem de viajar e reconhecermo-nos nos outros, sem os nunca ter visto. Sobre a última mesa, o cotovelo da rapariga que coça a cabeça rapada e um tabuleiro de xadrez, onde o rapaz da crista verde movimenta a torre branca. Atrás deles, há uma tábua como balcão: bar a todas as horas, cozinha em horas de refeição, recepção das 8am-3am. 9h20 no relógio; Bob grita “Hi!” qual nazi em corpo de Popeye e isto assusta e aceitamos camas no dormitório misto. Bob chama “Olivia” para nos entregar a chave, apetece-me rir mas mordo a língua. O punho de Bob que segura o meu BI também me assusta. Regina adormece no beliche de ferro por cima de mim e Luís no do lado, em baixo como eu. Conto 21 colchões, nenhum deles é nosso. Quando acordo apercebo-me do almoço fora de horas. A certeza de que o nosso sono fugidio deu uma fuga ao tempo. Atravessamos o que era a sala de convívio, agora um depósito de charros em cinzeiros e bocas e de corpos estendidos. Reconheço o cotovelo da rapariga na mesa onde o jogo de xadrez continua igual. Ainda a torre branca. Um bafo a hash e erva e mínimos de oxigénio. O fumo do cigarro de Regina continua imperceptível. Finalmente, Luís desaparece pela porta, Regina segue-o e atrás vou eu e a página 725 aberta: The best vacation to Amsterdam is the one you can’t remember. Chove. Cá fora, na rua, o ar tem cheiro. O mesmo que o Bob’s Youth Hostel tem entranhado.


4. Verde
As ruas são estreitas, os atalhos inúmeros, coffeeshops aos pontapés e as lojas de souvenirs atropelam-se. Luís e chuva do lado exterior da vitrina. Eu e Regina apuramos que em qualquer recordação da cidade uma folha de cannabis fica sempre bem. Sorrimos – o que não acontece a Luís desde que decidimos após 3 museus e a Casa de Anne Frank, um percurso por canais e ruelas em busca da Sinagoga Portuguesa, por onde nos perdemos várias vezes ao som de resmunguices – “Agora são judias?”, “Uma questão patriótica?” – e alguns palavrões, de citação desnecessária. Sinto-me presa por andar a pé, sempre que nos ultrapassa (o que é constante) uma bicicleta pedalando liberdade citadina. Vejo-me a cobiçar patins e boomerangs, talvez papagaios de papel, tanta relva, tanto espaço – Cobiço as árvores enquanto corremos no Vondelpark, rumo ao abrigo de um viaduto, longe dos bancos de jardim. Pena que chove, penso, e torno-me repetitiva como a chuva.

- Percebe-se que os prédios são pitorescos – consola-se Regina, sentando-se à minha direita no chão frio onde não chove.
- Gosto do facto de serem tortos – digo.
- Pudera, até os gajos da construção civil não deixam de fumar o seu joint – diz Luís que senta à minha esquerda.


5. Azul
Luís precisa de uma cerveja. Regina quer um coffeeshop. Nos coffeeshops não negoceiam álcool, segundo a empregada do Pub Inglês onde almoçámos. Uma informação por confirmar, e, no entanto, Luís agradeceu-lhe com um berro cavernoso: “Fumem charros mas não se embebedem!”, num português perfeito. A empregada arregalou os olhos como quem não percebe o pedido que não foi feito. Balbuciou “Yes… ok”. Virou-nos costas. Em menos de um minuto, trouxe-nos a conta sorrindo para o pescoço de Luís, porque não conseguia olhá-lo nos olhos. Regina agora olha-o nos olhos. Pergunta-lhe se a sua atitude foi pura indignação ou apenas estranheza. E responde “São políticas, Luís” – O despique entre os dois avança sem a minha participação, mas penso que todas as políticas são estranhas; que talvez nesta cidade tenha todo o sentido pubs para uns, coffeeshops para a maioria; que se no meio por vezes está a virtude noutras resume-se a um impasse. O agora resume-se a estes dois e a um impasse. Pub vs Coffeeshop. Eu no impasse. (Oh mãe se tu me visses, qual feitio retorcido, qual genética, sou assim. Houve um tempo em que tentei palavras agridoces. Desisti. Ou essas palavras desistiram de mim.) Levanto-me; eu e o meio somos opostos sem atracção.

- Vamos – interrompo-os, e não quero falar sobre o tempo.


6. Anil
Olho para cima, conto 6 ferros a suportarem o colchão habitado por Regina, sem saber há quanto tempo estou deitada no beliche de baixo. Continuo de costas, espalmada nos lençóis. Luís está a meu lado, no beliche ao lado. Certifiquei-me disso pelo canto do olho esquerdo. Não sei que lhe diga. No menu turístico do coffeeshop, escolhemos erva com Afeganistão e branco no nome e ele não nos disse nada. Foi o outro rapaz, o que trabalhava lá, quem misturou vestígios de tabaco, pôs mãos na mortalha e no filtro, porque Luís não nos disse nada quando foi para a rua onde ficou à nossa espera. Fomos ter com ele pouco tempo depois, após dois a três bafos a cada, Regina segurava o charro mas o riso não. Fugimos as duas às gargalhadas e com vergonha, por isso não dissemos nada ao rapaz do coffeeshop, éramos incapazes de falar. Um riso incontrolável no reencontro dos três e Luís também não nos disse nada. Não sei quando, calou-se o riso, e um degrau de cimento na rua amorteceu o meu corpo. Sentei-me sem pensar. Foi o meu corpo quem capitaneou a decisão e o meu cérebro sem subterfúgio, por razões anatómicas, permaneceu comigo o tempo todo em que estive sentada. Fui além do medo. A primeira experiência de pânico. Lembro-me de estar sentada num momento infindável, na estranha consciência do que é perder a noção do real. Uma realidade paralela. Não me mexi, corrijo, mexia os olhos. Regina também já não ria. Luís já falava comigo, eu olhava-o sem responder. Era como se o meu olhar estivesse a ler uma banda desenhada do tamanho da vida real, onde tudo eram manchas às cores, incluindo eles em contornos de personagens, a realidade dividida aos meus olhos em quadradinhos de B.D. E eu de fora, sentada, observando. Regina começou a sentir arrepios, descrevia sensações de frio que afinal eram de calor, mas afinal o calor é que era frio. Ela andava de um lado para o outro com o azul dos olhos alucinado. Luís falava já muito e nenhuma lhe respondia. Quis tocar-lhes mas tive medo de não os sentir; naquele estado ainda sabia que os heróis de banda desenhada não têm pele sensível ao tacto. Foi Luís que não tocou no charro quem nos serviu no degrau da rua; comida, café, água, e por último, forçando a sua vontade, entrou num coffeeshop e reapareceu eufórico apresentando-nos “A receita mágica”. Ambas engolimos açúcar com água, e não o contrário, mas não disse nada a Luís. Não lhe disse que não pára o efeito, mas atenua. Quando chegámos aqui ao quarto precisava de me deitar, mas tentei explicar-lhe o que aconteceu e sinto que não me entendeu. Ele continua a meu lado e não sei que lhe diga. Ainda não fechei os olhos. Gostava de conhecer o David Lynch, ele compreende-me. Acho que ainda ocupo um episódio digno de Twin Peaks. Acho que devo ser sincera com Luís.

- Estou com medo de não acordar.
- Cala-te e dorme – diz-me Luís, a sua maneira de me desejar boa noite.


7. Violeta
Na manhã seguinte Bob e Olivia servem-nos com colheres de pau tamanho Obélix, óleo com ovos mexidos como pequeno-almoço. Duvido se vivo um daqueles sonhos demasiado reais. Procuro as palavras escritas à chegada e risco-as: Cidade sem Azul. Escrevo-me a mensagem I saw the city out of the blue na bíblia de viagens para quando acordar. Sou incapaz de traduzi-la, a frase. Há sol mas sinto a chuva, porque vim cá fora vomitar. E neste misto de sensações penso no que é mais humano, o que há de mais real. Esqueço-me sempre de qualquer coisa em casa. Ainda bem. Guarda-chuvas tapam arco-íris.

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