quarta-feira, outubro 12, 2005

O Amor Não é Impermeável


Para o Coroneu
(o fim não é aqui)



Ela entra na banheira com o vestido mais caro que encontrou. Estende-se, analisa que por um triz a água não transborda, e pensa como sempre detestou água azul em aquários de seres humanos, a sua definição de piscinas. O azul é demasiado artificial, explicou a Mr. Auden quando o conheceu, ele calou-se mas não consentiu. Arrastou-a para o exterior do hotel. Lá fora não havia fumo, nem a música da festa. Os copos nas mãos e ao ar, os amigos de sempre e os amigos por uma noite, ficaram todos para trás, no casulo do hotel. Ela corria no escuro porque Mr. Auden andava, ao seu passo tamanho 45. Sentia-lhe a mão pesada espremendo submissão e gostou, de ter uma mão catraia. Mr. Auden arrastou-a ou ela deixou-se arrastar. Talvez porque naquela madrugada haviam flores roxas na piscina. Do tamanho de almôndegas. As pétalas pareciam papel. Flores dignas de outras águas, de ondas perfeitas, ruivas, disse Mr. Auden apoderando-se do cabelo dela, aquando o pedido de casamento. Estampou-se-lhe na cara uma expressão de quem percebeu nada. De nada lhe valeu. Porquanto ele continuou com a história das flores, que se agitavam com o vento da noite e o vento fazia-a levar dois dedos à boca, donde retirava fios de cabelo da cor das sardas, num gesto de boneca de dar corda. Pensou velho maluco, ao entender-se a boneca que Mr. Auden resolvera comprar. E quando ele a empurrou contra à ardósia do bar da piscina onde anunciavam o prato do dia anterior, ela viu-os no espelho de água azul fazendo amor e decidiu que sim, que ele era maluco e porque não, no dia seguinte casaria com Mr. Auden. Ela tinha 25, metade da idade dele. Ele era rico. Ela uma vida sem rumo, coleccionando empregos e namoros. Nem um marido, nenhum namorado rico. Findas as férias regressou a Portugal, onde às críticas das pessoas respondeu só quem lá esteve é que pode falar, não se calou. Talvez consentiu. Ela não o amava. Também não amava ninguém. Nem a si própria.

Ela aterroriza-se com a sua cara na transparência da banheira, porque o vestido mais caro de Glasgow borra a água de preto. Há cinco anos que se mudou para a cidade de Mr. Auden. Deixou de conhecer alguém. Na verdade, conheceu o marido, convivia com o casal Campbell, principalmente com Mr. Campbell, por este ser sócio e o amigo da vida de Mr. Auden, e também pela contingência de Mrs. Campbell ser muda. De referir que nunca fez nada entre as compras e as horas à janela, identificando-se com a chuva que mora em Glasgow, miudinha e igual dia-a-dia. Foi capaz de igualar o tempo passado na cama de dia e de noite. Mr. Auden quase que em simultâneo, reconheceu a sua escova de dentes acompanhada e a dona da outra escova como uma esposa de pacote primoroso e um interior doente, com o prazo de validade a expirar. Nessa mesma manhã, Mr. Auden apresentou-lhe outra pessoa que ainda hoje a acompanha, o seu psiquiatra. De pouco lhe valeu. A si nunca se encontrou, não sabia quem era antes, não sabe como é Mrs. Auden. Persistiram os medos no corpo amorfo que a enoja e que é o seu. Visitou a banheira como um muçulmano visita a mesquita. Mr. Auden endoidou ao vê-la acabada de sair do banho ene vezes por dia, e foi ele ao psiquiatra. Veja-a como uma criança, aconselhou o médico, Ela tem 30 anos, gritou-lhe Mr. Auden, mas ao chegar a casa respeitou o especialista. Com uma das mãos dominou-a pelo pulso como fizera cinco anos atrás, com a mão direita espremeu-lhe a cara dizendo, há o estímulo positivo e o estímulo negativo, ou endireitas a alma ou deixo-te com marcas que nem mil chuveiros te hão-de lavar, agora classifica este estímulo como quiseres. Fez-se boneca à qual se dá corda, quando, pausadamente, se abriu nela um sorriso. Mrs. Auden ontem à noite viu Mr. Auden dentro si pelo vidro embaciado da janela do quarto, e, pouco depois, ouviu-o com interferências da água, a cantar no chuveiro. Ela não tomou banho. Adormeceu. Ele não a acordou. Mr. Auden não voltou a acordar.

Mrs. Auden era incapaz de ir ao funeral de Mr. Auden. Ela gosta mais de se ver com o vestido molhado na banheira, do que quando o experimentou na loja, certificando-se de que era preto e o mais caro. Mr. Campbell não a condenou pela ausência no cemitério que escolheu para o melhor amigo. Horas atrás ela visitou-o em casa. Foi lá declarar que sabia da falência, sabia que não tinha nada, que precisava de um emprego. Riu-se Mr. Campbell, riu-se muito. Depois assinou um cheque, enquanto dizia compra o vestido mais caro da cidade, põe-te bonita e arranja um marido. Mrs. Campbell permaneceu calada, sem alternativa. Ela comprou o vestido, ficou bonita e encontrou-se com a única pessoa que lhe restava em Glasgow, o psiquiatra. Ao chegar a casa respeitou-se novamente o especialista. Tomou comprimidos para dormir. Só que todos de uma vez, de um só gole de álcool. Afinal falta apenas um marido e para isso, pensa sonolenta na banheira, nada melhor do que um bom banho antes que Mr. Auden daqui me puxe pela mão.

0 Comments:

Enviar um comentário

<< Home

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com