sexta-feira, novembro 18, 2005

Coma

A imagem de um comboio a partir e outro a chegar. Duas raparigas acabadas de chegar à cidade quando já passava muito da meia-noite. A imagem da estação mal iluminada. Bem-vindas. A razão de certas pessoas chegarem e outras certas partirem. Ao destino. Do destino. A vida. Um susto provocado por um apito derradeiro. O comboio acabado de chegar parte e adeus. Os carris viúvos. Finalmente. Afinal a estação um deserto de comboios. Fez-se luz à metáfora. A lógica da imagem do comboio fantasma. Duas raparigas chegadas à cidade quando a noite há muito que cresceu. Uma rapariga alta. A outra média. A cidade pequena.

Quatro lábios arrepiados e molhados pelos pingos do nariz. Continuarão a tiritar quando chegarem lá fora. À madrugada que se constipa. As raparigas de olhos vermelho arroxeados. Inchados. A possível dúvida se alguém lhes pregou um soco em cada olho. A dúvida nos olhos de alguém que passa. Coitadas. A certeza no gesto de um vagabundo. Que lhes aponta uma garrafa vazia e a boca cheia. Privilegiadas. Um sem-abrigo diz. Sopraram-vos as pálpebras transformando-as em insufláveis. As duas pensam mas não o chamam de bêbado. Uma delas em miúda soprava a bóia na praia para chapinhar à beira-mar. No Inverno a outra tornava a enchê-la para descobrir poças fossilizadas pela chuva. Mas ambas cresceram. E nenhuma desconfia que pálpebras inchadas são bóias. Dos olhos. O bêbado diz. Assim flutuam. Assim não se afogam os olhos. Uma escapatória. De quando em vez. Ai. Ai as intempéries que acabam por declinar de cada olho. Ninguém escapa. Das lágrimas. As lágrimas.

As lágrimas estão sentadas dentro dos olhos das raparigas. Porque nenhuma chora. Porque haviam de chorar. No agora que chove. Nesta hora só água lá fora. Num lugar desconhecido. Na estação de uma cidade estranha duas raparigas chegaram cansadas. Com fome. Sede. Sujas. Só água lá fora. Nenhum sítio para dormir. As páginas de jornal são a cama do sem-abrigo. Bêbado. Uma decisão das raparigas. Duas moedas engolidas por uma ranhura: um Abre-te Sésamo de um cacifo. Duas mochilas grandes atiradas a um gigante cacifo dentro da estação. E os pés das raparigas finalmente pisam chão. Fora da estação.


Em frente à estação. Uma frente de dezenas de bicicletas. Húmidas como elas. Também sem correntes. O medo é húmido. O calor do medo não é quente. Como não é quente a noite por onde as raparigas caminham. Onde são poucas as pessoas e poucos carros. Com destino ao contrário delas. Uma delas desejosa de descobrir a cidade. A outra sem esperança no desconhecido. O conhecido tem luz. A noite tem a luz da noite. A resposta de uma rapariga. Interrompida. Pelos faróis de um carro a esconder a noite. Aos olhos das raparigas. Um carro. Aparição do nada. A fé no inesperado. Um casal de idosos em marcha na noite com duas raparigas no banco detrás. Uma delas confiante na boleia até ao centro da cidade. A outra com desconfortável desconfiança. Vitória da primeira.

Os pés das raparigas de pousada em estalagens e hotéis. Por fim pés fora de telha. Nenhum sítio para dormir. Os restaurantes em redor são interditos a cartão-jovem. Outra decisão das raparigas. Duas raparigas estranhas à cidade avistadas numa night shop. Duas sandes para duas raparigas. A imagem delas sentadas num banco. No Markt. Duas cervejas para duas raparigas. Novamente distinguidas porque sentaram-se na praça central. A lembrarem-se do bêbado na estação. Privilegiadas. Afinal boca cheia aperfeiçoa a visão. O novo é deslumbrante. As ruas. Os prédios. A arquitectura da cidade a contar a história da cidade. A imagem do tempo a passar por Brugge sem a destruir. O tempo a passar. A regressar.

Boa noite num bar e duas cervejas para duas raparigas. Novamente. A que não gosta de cerveja rende-se ao experimentar uma que sabe a framboesa. A que é adepta da cevada deixei-a ficar. Morta. Absorta. A cerveja na mesa e a rapariga no aspecto do empregado. Em mais do que um aspecto. A mais nova esperança. O tempo não passar. A fé em umas delas. Em que haja troco do lado do empregado. A conta por conta da casa. Diz o empregado. Antes de o bar fechar. A outra rapariga contente por tabela. Ambas dizem boa noite ao bar. Não ao empregado que não voltou. A imagem de uma rapariga rindo e outra a cantar. A repetir não te ouço. O riso a aumentar. Não ouço. O riso. Não. O riso a diminuir com uma pergunta. Sim. São três da manhã. E duas raparigas de regresso à estação quando a cidade há muito que ronca.

A imagem da estação mal iluminada. Bem-vindas. A razão do desaparecer de certas pessoas e o aparecer de outras certas. A mim. De mim. A ausência da razão. Um susto provocado por roncos masculinos. Dois rapazes em dois saco-cama estendidos no chão. Dentro da estação. Um Abre-te Sésamo ao cacifo e até amanhã. Diz uma voz de rapariga. Amanhã. Ainda responde outra rapariga. E voa uma página de jornal. Ai a cama do bêbado. A lógica da estação ter cinco sem-abrigo. Duas raparigas de olhos bem fechados. Finalmente. Afinal o que era uma esperança simples. A seguir à noite vem o dia. Duas raparigas chegaram à cidade quando a noite há muito que cresceu. Uma era alta. A outra média. A cidade pequena.

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