domingo, novembro 06, 2005

Se eu Não Existisse, Escreviam-me

Conheci B. e F. no Liceu durante o 12º ano, elas sentadas na penúltima fila logo à frente dos rufias da turma. Um deles, de quem lembro a cara mas não o nome, era filho de um preso que assassinara o irmão. Não só por isso, mas também, eu sentava-me na primeira fila, o mais longe possível, mais à frente impossível: havia a parede com o quadro; território dos professores que me distinguiam e adoravam e confiavam em mim. Talvez por uma questão de filas de carteiras de distância, B. e F. não falavam comigo.
Dia incerto o rufia de sangue criminoso, faltou ao intervalo para roubar um teste. A turma só dezoito e dezanoves. A primeira fila não. Recusámos fotocopiar o formulário e fingimos que não era de propósito. Na primeira fila não mais que 15 valores e fingimos que não era de propósito. Claro que se abateu o drama sobre a frente da sala e a histeria na professora; os braços ao alto em “v”, o embaraço na gaguez dela: “Is... is… isto não é nor… nor… nor… normal ”. Enquanto o coro da primeira fila (ainda finjo que não cromos, o coro) respondia à mestra invocando exigência no teste, tocou para intervalo. A turma evaporou. Na sala manteve-se apenas a ocupação das carteiras da frente e a professora que nos distinguia e adorava e confiava em nós. E voltámos a fingir que nada fora propositado quando o teste de Matemática foi anulado, substituído pelo teste surpresa do dia seguinte. A turma entrou em ebulição. Lá à frente, na minha frente, só dezoito e dezanoves. Para trás só negas e positivas abaixo dos doze, conformadas mas desconfiadas, de olhos mortíferos na primeira fila que plagiou a gaguez da professora jurando à turma: “Não… não… dis… disse… dissemos… não dissemos nada”. Se não tivesse tocado para intervalo, nem sei. O meu rabo manteve-se quadrado como a cadeira. Eu pertencia à primeira fila, que novamente permaneceu na sala. Novamente fingindo que não era de propósito. Que a turma era só amigos. Só que eram clones dos nossos amigos, aqueles que da janela da sala víamos no pátio à espera da primeira fila, onde se nos apanhassem nesse dia, não sei. Talvez por uma questão de vício elas não falaram comigo. B. e F. fumavam no pátio.
Tão traumáticos, os dias seguintes. A ilusão de ser visível como uma formiga: 1,88m sendo rapariga nunca me deu nenhum jeito; sempre fui a garrafa e os meus namorados reduzidos a copos; excepto concertos em pé todos os espectáculos causam-me torcicolo e no cinema ocupo a última fila não porque é a melhor mas é melhor para os outros. Pode ser por aqui, uma questão de pescoço, talvez justifique nesses meses B. e F. não se esticarem para falar comigo. Contentava-me com o facto de não me apanharem de moncos desprevenidos no nariz, já que não as poderia ridicularizar do mesmo, do meu alto, elas tão baixas – uma questão de perspectiva. B. e F. sempre foram copos dos namorados.
Cheguei a pensar que elas não me viam, não como eu sou. Desculpo-lhes se me disserem que das minhas mamas até aos pés, viam um rapaz. Eu usava botas de campismo tamanho 44. A minha mãe diz: “Corpo grande assenta em pés grandes”. E aos 18 anos era a minha mãe quem me comprava as botas, as calças de fato de treino e a camisa de flanela aos quadrados cinzento rato que usava todos os dias. Mas não eram as mesmas, as calças e a camisa. Era como uma farda, fardas há iguais e muitas. Eu tinha 7 camisas quadriculadas cinzento rato. (Não admito que a camisa de flanela do rufia de sangue presidiário era igual à minha.) Culpo as camisas serem demasiado largas, para que B. e F. não me reconhecessem como uma delas. Porque as minhas mamas estão para o meu corpo, como o meu corpo está para os meus pés.
Dissipou-se-lhes a desculpável dúvida do meu sexo aquando o baile de finalistas desse ano. Elas no espelho da casa de banho das raparigas onde eu, esverdeada como ninguém no hotel, vomitava o lavatório de verdinho como eu. Foi um bom momento para mim, não pelo intermitente vómito, mas por sentir a mão de B. a segurar-me a testa: encostava-me ao lavatório como que a uma almofada, finalmente tive menos tamanho que elas.
F. ria-se em agudo alcoolismo e nem o autoclismo que ela puxara suprimiu aquele riso: causava-me a sensação de ser vítima de acupunctura no crânio. B. não me largou a testa. Nem quando F. apercebeu-se de ter nos joelhos duas rodelas de pele e entrou em pânico. Que aquele baile não era de Carnaval. Que o seu namorado estava na pista. Como era possível. B. sem me largar gritou-lhe que rasgara as collants com a força das vodkas ao levantar-se da sanita. F. não gostou. Para mim um final feliz: a saída triunfalmente solitária de F. da casa de banho. Fiquei só com B., só minha por uma mão na testa. A ser precisa, ficaram também as collants de F. no lavatório verde. Tive pena que ela tivesse a depilação feita, se fossem as minhas pernas nuas naquela noite, nem quero imaginar.
Foi a noite em que pela primeira vez beijei um rapaz. Dia seguinte B. e F. falaram comigo. Ainda juram que ele era filho de um preso que assassinara o irmão.


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