domingo, setembro 17, 2006

Kusturica, aquele comboio e outras coisas do Leste

O bar fica a umas três ou quatro carruagens daquela prescrita nos nossos bilhetes. Onde o Cookie estendido dá com os pés na janela, ultrapassa o seu espaço e baba o meu assento, sem notar que já lá não estou. O comboio decrépito, uma angústia flutuante. No bar a ausência de uma máquina de café. Lamento precisar tanto de cafeína: o café aqui é solúvel, de um castanho transparente, daqueles que avó faz. As mesas onde pessoas vão jantar são feias, não que seja importante para o apetite. Mas importa-me a realidade dos objectos, importam-me as mesas. Assemelham-se a tabuleiros brancos mal lavados em ponto grande. E as cadeiras, castanhas, menos transparentes que o café, ajustam-se na perfeição: tão feias. (Eu não posso estar bem.) Duvido se aos vinte e quatro anos troco o balcão por uma mesa porque «não é de macho», recordo o meu avô e já sentei. Só pode ser do café, esta angústia que não passa: eu como o pormenor das jarras nas mesas onde apenas uma rosa.

Carruagens atrás o Cookie ressonando não saber quanto tempo resta até chegarmos a Bucareste. Não sou eu quem o consegue acordar. Há pouco parou o comboio numa estação de um lugarejo no Leste (não tive pachorra de me levantar para ler o nome do local). Anoitecera à janela. Quando típicos personagens ciganos de Emir Kusturica visitaram-nos a carruagem e eu estupefacto. O Cookie nada. Aliás, roncou mais alto, o que lhes deve ter soado a «boa noite» no seu dialecto. Porque a família Kusturica começou a cantar e a tocar e a beber. Um momento de incontrolável agitação. E uma qualquer coisa de angústia em mim, qualquer coisa num click de fotografia a dar para o torto (a minha mãe aos gritos comigo no quintal a colocar um foguete numa panela e o meu avô rindo-se «é de macho» e click: a panela aterrando nas telhas da casa dele e o buraco até hoje, mal tapado).

Dois homens torrados, uma mulher que avaliei prostituta (nestas bandas parecem-me tantas delas) e a filha (talvez dela, de um deles?), numa berraria de badalar as amígdalas, o chocalhar de medalhas e todos palmas, como se o mundo emudecesse amanhã. Com o Cookie em roncos ignorantes. Comigo a encolher os dedos dos pés; um sinal em mim de ansiedade (ao perder a virgindade, a prima mais velha do Cookie tirou-me a meias e perante os dedos contraídos disse «pareces um macaco», fosse o meu avô: «macho!»).

Traziam um garrafão que constantemente trocava de mãos. O ritual de “agarra na garrafa, bebe da garrafa, passa a garrafa”. Da boca que o recebia, ouvia-se mais um chupar que um beber, que a filha imitava de modo que não podia ter dez anos. Doze anos, não mais. “Agarra na garrafa, bebe da garrafa, passa a garrafa”. Uma aflição. Sempre que os dois homens e o gargalo entre os seus quatro olhos de cigano surgiram centímetro e meio de distância do meu nariz. «Bebe, bebe, bebe», supus a palavra que me repetiam, o que deve ser hilariante naquela língua porque davam gargalhadas sempre que «bebe, bebe, bebe». Em inglês expliquei não perceber e o homem mais velho, num tom de convite impingido: «drink, drink, drink». Todos riram. Afinal beber é hilariante em todas as línguas. E obriguei-me a rir. O Cookie fez um mastigar de sono. Eu atingi-o com o cotovelo. Finalmente desta ele «calem-se, foda-se, quero dormir», o que novamente lhes soou a «boa noite» porque a família Kusturica recomeçou a cantar e a tocar e a beber.

Voltávamos ao início. A meu lado o Cookie nem uma pestana arrebitada. Alheio à festança do canta, toca e «agarra na garrafa, bebe da garrafa, passa a garrafa». Aos dois homens torrados já não os via cabeça-tronco-membros mas dois sorrisos tamanho humano rangendo-me os dentes. Um tocava acordeão, o outro pandeireta. Senti-me obrigado a acompanhar: «lá, lá, lá, lááá». Lá continuaram a espetar-me com a gorda da garrafa. Um prenúncio de bomba-relógio, o tic-tac tic-tac tic-tac, o deles «drink, drink, drink», o meu «lá, lá, lá, lááá». Com a pressão a espremer-me inventei, explicando que pertencia a «não, não uma religião, uma seita», que não permite a ingestão de álcool. Entreolharam-se. Falaram-se. Riram-se! E eu agora realmente à procura de um Deus meu e respectiva comitiva angelical. Eu à espera do «drink, drink, drink», surpreendido por eles «ok, ok, ok». Mas a cigana reinventou o guião, encarando-me. Fez-se um sorriso semelhante ao dos homens sem o ranger dos dentes e eu tive ainda mais medo. Lançou-me o rebento. A filha, de repente à mesma distância que o gargalo do garrafão atingira: centímetro e meio do meu nariz, doze anos de corpo. «Sold», disse ela. «Euros», estendeu-me a mão. Instintivamente encolhi os dedos dos pés, ouvindo «pareces um macaco». Pena, que eles não. Ninguém rira. A puta a insistir na venda, eu a insistir no não, a mulher «yes», «no», «yes, yes», «no», «cheap!». Nisto obriga a miúda a sentar no meu colo. De costas viradas para mim. Pelo nariz adentro sentia-lhe o cheiro a mofo dos cabelos. Sobre mim aquele corpo sem peso. «Yes.» Sem peso. «Yes.» Sem peso. O meu «no», cobarde, só. Enquanto pesavam-me seis olhos ciganos, congelados, de adulto. E «no» repetido na língua deles não compreendo se tem ligação para a cigana do nada arrotar, os homens arrotaram, depois foi ela a repetir-me o que os homens haviam dito: «ok, ok, ok». «Take her», disse-me a mulher, saindo da carruagem com dois homens atrás.

Quando entro na carruagem o Cookie desarruma a mochila. Não demonstra qualquer nojo da baba que deixou no meu assento. Roupa interior. Três livros. O saco-cama sobre os nossos lugares. Dá-me tempo para decidir que primeiro lhe peço que vá ao bar, porque afinal as rosas são falsas, preocupa-me não perceber a realidade das jarras (tão feias) se imitam o cristal ou o plástico das rosas. Depois sim, explico-lhe como gritei ser casado e levaram a miúda. Ela esticava-me a mão acenando, nem olá nem adeus. A mão dada. À minha mão. A minha, cobarde, atirou. Ele que não procure mais as bolachas.

«Agora engodas menores à custa das minhas bolachas?»
«Cookie, I think this is the beginning of a beautiful friendship. »

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