segunda-feira, agosto 09, 2004

Amanhã Sei Onde Não Estou (Four)

she scratches a letter into a wall made of stone
maybe someday another child won't feel as alone as she does

Vedder, Ament; Why Go


Quem olhasse o seu corpo por detrás, ficava na dúvida se era rapaz ou rapariga. O cabelo devia de ser castanho ou preto, a confiar na cor das sobrancelhas. Mas nunca tive a certeza: usava constantemente um gorro, daqueles que parecem um preservativo enfiado na cabeça. Por isso, para mim o seu couro cabeludo será sempre tricolor; branco, preto e um pompom vermelho.

O meu trabalho era simples, tão simples que eu próprio me denominava como o pombo-correio de serviço. Não tinha cartas lacradas no carrinho de metal. Todos os envelopes eram revistados antes do pombo (eu) debicá-los em camas, onde se aninhavam adolescentes (como eu). A diferença entre mim e eles: um dia viravam pacientes e eu virei pombo – a minha necessidade era arranjar dinheiro e tirar a carta de condução, como um mais um igual a dois. As necessidades deles, muitas vezes, não eram tão matemáticas.

Mas há camas que não se esquecem. Nem esqueço que até hoje não sei o tom do cabelo daquele corpo; a dormir no lençol que recebia carta sempre à segunda-feira.

A enfermeira-chefe contou-me que aquele quarto era já ocupado para mais de dois anos. As visitas dos pais cingiam-se a duas datas específicas: o dia do seu aniversário e o dia 25 de Dezembro. Mas nesse ano não se deu esta última visita. Sei-o porque o nosso contacto durou aproximadamente um mês; fui contratado no início de Novembro e quando lhe deferiram alta, já saiu com a árvore de Natal à porta do hospital psiquiátrico.

A dada altura, já sabia duas das três coisas mais importantes da cabeça que usava um gorro tricolor: as cartas eram dos pais, e os pais não vinham com as cartas às segundas-feiras porque nem todas as segundas é Natal, nem se faz anos.

Lembro-me perfeitamente da primeira e única vez que o pompom vermelho virou-me as costas e vi-lhe a cara. Estava como sempre ao pé da janela e eu pousei na cama uma carta porque era segunda-feira. No dia seguinte, iria para casa porque tinha tido alta e eu sabia, e deve ter notado porque quando ia a sair do quarto, murmurou:

- Não vou lá ficar muito tempo.

Parei. Virei-me para perguntar se planeava fugir de casa. Riu-se. Virou-se também e suspirou e disse:

- Como posso fugir de um lugar de onde fui expulsa?

Foi aí que soube a terceira coisa importante: era rapariga, e só uma rapariga podia fazer-me desejar que morássemos no refúgio de uma segunda-feira.




quinta-feira, agosto 05, 2004

Charivari

“Há 15 anos que não tenho 15 anos e não tenho pena nenhuma. (…) É a idade em que parece haver qualquer coisa contra nós. O que é concretamente? É o mundo inteiro. Ou melhor: é o mundo inteiro com a insidiosa colaboração dos pais.”

Miguel Esteves Cardoso, Os Meus Problemas



Se a minha mãe soubesse nadar vinha connosco à praia, todos os dias menos hoje. Hoje não; não ia querer, nem podia evitar o cheiro a éter esta tarde, enquanto ela a afundar no couro de uma cadeira pelas palavras do médico

- Se a dona Mariana quiser o nome popular, digo idade crítica

esta balbúrdia que sei lá como vai o meu pai explicar, talvez

- Mariana, deu-me um calor quando vi aquele braço peludo

o sol é o holofote da praia e percebo-o agora; a sentir mais do que nunca uma plateia num pavimento de areia, ao mesmo nível que nós, o areal esgotado com espectadores em trajes menores, sem fato de gala e a comer gelados, a fumar, a rir e a murmurar porque após o chinfrim, surge agora o projector solar virado para nós

(Ao menos deram-te o papel de protagonista na sequela: “três homens e uma rapariga”; take 1. Acção.)

dois homens e uma menina porque o rapaz que não está com boa cara, tem idade para ser filho do meu pai
(ou do meu tio, mas o meu tio é um playboy e esses fazem sempre por gosto sem fazer o filho)
quanto a mim, quanto mais pequena melhor, não me importo se afundar como de certeza a minha mãe com o médico

- Se a dona Mariana quiser o nome do período da vida, digo climatérico

sumir na areia entre o meu pai e tio, empurrada pela vergonha movediça e não me importo se encolher, menos um ano e mais outro e de uma vez uns três, até o tamanho registado da primeira vez no bilhete de identidade, e não da segunda - ainda anteontem na Loja do Cidadão, quando a rapariga que agarra o rapaz também lá estava, na altura que a mulher

- Um e sessenta e três, e não faças essa cara porque eu aos quinze anos parei no meu metro e meio

a renovar o documento, eu e a rapariga
(o rapaz nunca tinha visto nem mais magro nem mais gordo)
tenho a certeza de que
(o meu tio já a reparou e o meu pai a pensar como explicar-se, talvez
- Mariana, deu-me um calor quando vi aquele braço peludo)

é ela, a olhar-nos com nojo, o mesmo nojo quando anteontem esmagou a impressão digital e desvairou com o dedo carimbado e

- Que horror

enquanto a mulher a mim

- Um e sessenta e três, e não faças essa cara

registava a altura no bilhete de identidade.

Se o tio não fingisse tão bem palmadinhas nas costas do meu pai, na minha frente e

- Deixa a miúda em paz com os amigos

nova palmadinha mas eu já não estava lá, talvez

- Agora vamos nós passear pela praia, quem sabe descobrir a nossa menina

eu e os meus amigos não parávamos o jogo de vólei, a seguir o homem dos gelados sem apregoar os cornettos, uma avó desolada porque quando os netos finalmente comiam as sandes de ovo levantaram-se, de repente um exército em fato de banho numa marcha desenfreada, na direcção de uma tempestade de areia sem vento, um rapaz sem boa cara porque com um olho esquerdo que já não vê nada, roxo, tão roxo como a cara do meu pai, que me confundiu a cintura com a da rapariga da Loja do Cidadão, antes envolvida pelo rapaz que depois de levar com um soco tem a sua razão para não estar com boa cara, o tio prestes a sofrer um ataque de riso e o meu pai não se apercebe, não ouviu

- Que horror

nem viu nada além de

- (…) aquele braço peludo

uma cintura de rapariga que não a minha com o braço do rapaz, a olhar-me pelo olho direito e a falar com o olho roxo como se fosse

- Um e sessenta e três, e não faças essa cara

um raio a desfazer-me molécula a molécula com uma vontade
uma vontade de não ter quinze anos que a minha mãe não percebe, nem vai perceber o meu pai

- Mariana, deu-me um calor quando vi aquele braço peludo

não ela sempre com os calores que para perceber precisa do médico

- Se a dona Mariana quiser simplificar, digo menopausa.




Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com