quinta-feira, setembro 30, 2004

Vida (Em) Comum (I)

1. Tal filha, mãe trocada

A minha irmã já não mora aqui. Cá em casa nunca ouvi a minha mãe em ataques de fúria capazes de desmoralizar um furacão. Nunca ouvi a minha mãe como ouvi outras mães pelas bocas dos meus amigos. «Imagina cordas vocais em máxima potência. “Pareces um espantalho” berrou-me ela, “Comigo é que não sais à rua assim”», queixava-se a minha prima Eunice, «”Assim” Jorge, “assim” percebes?», e eu percebi a coincidência com o dia em que ela decidiu fazer uma permanente ao cabelo e oxigená-lo e depois para não cansar tanto amarelo, pintou a metade direita do couro cabeludo de laranja. A tia Eulália não gostou. As duas – prima e tia para mim, mãe e filha entre elas – durante 3 meses não foram vistas juntas. E se o cabelo tudo levou, o cabelo devolveu tudo logo que voltou à cor normal. Porque a chantagem monetária na adolescência funciona às mil maravilhas: a mesada da Eunice emagrecia a cada levantamento no Multibanco. «Não é ao corte do cordão umbilical que ganhas direito sobre os fios capilares, porque nada no corpo que usas é realmente teu», explicou-me uma Eunice de catorze anos, estendida no azul do puff que tenho no quarto, «e só poderás comprar a pele que vestes ao ver os teus progenitores por um canudo». E na semana passada a profeta de vinte e três anos, de seu nome Eunice, realmente viu: formou-se em Filosofia – cumpriu-se o meu raciocínio de que tanta teoria desde miúda só podia acabar num curso destes – e cumpriu o seu próprio raciocínio, da teoria à prática: enrolou o diploma em tubo, encostou-o ao olho esquerdo, e lá mirou a tia Eulália pelo monóculo de papel. A seguir fixou-me como alvo enquanto repetia, «Jorge por um canudo, Jorge por um canudo», e com a continuação da cantilena; «capilares à vista como o arco-íris, como o arco-íris», entrevi durante estes meses a Eunice a tomar café na pizzaria do Sr. Fernando como sempre, em horário diferente da minha tia, como anos atrás.

2. Namorada de amigo meu não é homem, temos pena

Eu e o André não nos importamos que a minha prima se sente na nossa mesa. Ela é parte da nossa mesa do café. O André conhece a Eunice há tanto tempo quanto eu. Moram porta a porta, que é como quem diz lado a lado. Conhece-a melhor que eu, em determinados aspectos. Mas esses “aspectos”…passo à frente. Além da consanguinidade, sempre preferi as miúdas com cabelo de uma cor só. O André ainda mora no bairro – ao contrário da minha irmã que já não mora aqui –, naquela porta verde mesmo em frente a esta; é o meu melhor amigo, só depois meu vizinho. É com quem partilho desde puto os cd’s e partilhávamos as miúdas, mas as miúdas não ao mesmo tempo. E hoje em dia nem em tempos diferentes há partilha. Como diz a Eunice, «Já não são macaquinhos, são gorilas na cabeça», e se antes ele dava um beijinho onde eu tinha dado um beijinho, agora nem quero pensar que “ele” deu um beijinho – na melhor das hipóteses – onde era “eu” a beijar. Um gajo pensa logo no quando “eu” e “ela” estávamos não-sei-onde, a ouvir não-sei-quê com o sentimento x, até que ela disse y porque conheceu o z – que pode ser qualquer um mas nunca o nosso melhor amigo. Porque o melhor amigo não é qualquer um. Porque aí não há discussão possível – é corte mais rente do que observar os pais por um canudo. «São uns sacanas de uns românticos armados em "playboys”», cataloga-nos a Eunice nas nossas conversas de café.
3. Mudam-se os tempos, mantêm-se as fugas de casa mas depois manda-se um e-mail

Na verdade, não acredito que as mulheres sejam mais complicadas que nós. A minha mãe concorda comigo. Também eu tenho um rótulo para ela: “Mãe flower power”. Gosto. Gosto de a ver onde ela tem a minha idade. Nas fotos. Sempre com decotes em v. Descasava estrategicamente os botões a insinuar a falta de soutien, e até nas blusas ela conseguia criar um decote. E outro v; de indicador e dedo médio esticados na mão, na companhia do seu sorriso “peace” e óculos à John Lennon a rematar. É das mulheres mais bonitas que já vi. Acho que a verdadeira discussão que ela teve até hoje foi com os pais. «Jorge, aos vinte e dois anos não és nenhum mentecapto e eu também não o era. E se os pais têm sempre razão porque são os pais, então só tens duas hipóteses: monólogo ou discussão. Não suporto chantagens e esta atitude abrange uma das piores que conheço; chantagem emocional, Jorge. Quanto a monólogos já cada um faz o quanto baste na sua cabeça. Sabes que gosto da controvérsia e se roçar a polémica ainda melhor, mas os teus avós eram incapazes de discutir pelo dialogar. Os teus avós não percebiam e nem tinham que perceber e eu também não. Arrumei a trouxa e agarrei na guitarra, fiz um telefonema para a tua madrinha que na altura vivia em Madrid, apanhei um comboio e mudei de casa.» “Mãe flower power”, sem dúvida. «A única chatice é que houve uma greve qualquer nos correios e passado um mês o teu avô teve que entregar a carta que lhes enviei, na ala das mulheres do Hospital de Santa Maria onde a tua avó estava internada. Mais tarde visitei-a e preferia esquecer os olhos horrorizados das outras velhinhas quando a minha mãe fez as apresentações. “Foi ela que quase me matou”, disse a tua avó.»

4. Quem canta, os seus filhos pode espantar

A Eunice é fã da minha mãe e define a minha irmã como um bolo: «A Sílvia é um bolo que encaixa na forma, percebes? Estudas, arranjas parceiro, manténs o parceiro, esqueces porque manténs o parceiro mas manténs, tiras o curso, casas, compras carro, casa, um cão, um ou dois putos e só então divorcias-te.» A Eunice dá sempre por terminada uma observação sobre a minha irmã através de uma tossidela, que é a sua maneira de gozar da Sílvia. «Eunice, não há maneira de passar essa tosse?», pergunto eu. «De vez em quando uma pessoa engasga-se, ou engasgamo-nos com uma pessoa. Escolhe tu. Em ambas as hipóteses o resultado é sempre tosse, primo», diz ela. E ultimamente a Eunice engasgou-se imenso cá em casa. «Olha filhota, e porque é que não aprendes outra língua, faz um curso de fotografia, uma viagem e experimenta viver dias num outro país, cultura, mentalidade», disse a minha mãe várias vezes, numa tentativa de evitar um ataque ao comprimidos, por parte da minha irmã que aos vinte e seis anos não aguentou ser reincidente nos professores não colocados. (A Eunice tossia.) «Mãe, a mania das florzinhas e dos lenços na cabeça e lemas batidos como “Make peace not war”, desculpa a desilusão, mas não se manifesta nos meus genes», disse a Sílvia. (A Eunice engasgava-se.) Mas à pouco a minha mãe foi curta: “Sílvia, orienta-te.” E a Sílvia mais curta foi e orientou-se. Fechou a porta de casa, depois ligeira abriu novamente e apenas disse: “Vou-me casar”. Bateu segunda vez a porta e portanto a minha irmã já não mora aqui. Neste momento, a Eunice ainda sofre o maior ataque de tosse da sua vida enquanto rebola na carpete da sala. Agora chega-me o André a casa e não percebe nada e encolhe os ombros e ri-se. A minha mãe não tomou medicamentos. «Jorge, isto é tudo por modas; já foi o stress, depois brotaram sobredotados e agora crianças hiperactivas. Superei tudo sem calmantes», disse-me ela. Depois deu largos passos, precipitou-se em direcção ao quarto e ainda lá está, a acalmar-se. Por toda a casa ouve-se uma guitarra e a voz da minha mãe em sintonia na desafinação:

“kum ba ya, my lord, kum ba ya
kum ba ya, my lord, kum ba ya
kum ba ya, my lord, kum ba ya
oh lord kum ba ya.”

sábado, setembro 25, 2004

Os Meus Dedos às Cócegas nas Tuas Cordas Vocais

Ao Mickey, entre a loira líquida e a gargalhada de uma morena no Reduto


Não pedes com licença ao mundo antes de fechar a porta; desapertas a gravata, o nó na garganta, as chaves e o troco que descansem onde calhar que amanhã logo lhes tiras a paz. Atiras-te à cama e pensas em tudo que é como quem diz não pensas em nada, ou melhor dizem-te porque

(a tal estória dos meus olhos aos olhos dos outros)

o telemóvel tem voz

- Dez e meia, apanho-te

e é o teu melhor amigo e por ser o teu melhor amigo não é possível (fingir) não te compreender

- Vais ficar em casa?

não desistir

- É sexta-feira, noite de sexta-feira

não pensar antes de

- Aconteceu alguma coisa?

empurrar-te para a confusão da rua

- Vai todo o pessoal

onde todo o pessoal são sorrisos que te contagiam, histórias da carochinha com bolinha vermelha que só hás-de contar aos netos, os brindes que levas a sério por compreender que
(- Pessoal estranho)
não têm nada de sério e por isso não é possível que o teu melhor amigo diga

- Vais ficar sozinho?

que a solidão está no quarto, como se a solidão tivesse pés próprios e não precisasse do teu corpo para hospedeiro.

Não pedes com licença ao frigorífico depois de abrir a porta; assaltas restos de comida, o pacote de leite à boca enquanto a bexiga enche-te e sabes que quando fores à casa de banho, a cozinha não fica solitária.

E de vez atiras-te à cama e pensas em tudo que é como quem diz
(não, dizem)
não pensas em nada, nem no teu melhor amigo

- Aconteceu alguma coisa?

que por ser o teu melhor amigo consegue (fingir) compreender que não és tu quem afunda nos lençóis mas o mundo armado em parasita no teu fundo, aos pontapés, sem pés
(roubou-te os teus).

Puxas o fio do candeeiro e apagas a luz do Mundo; sem boa noite aos candeeiros lá fora, nem aos faróis solitários na estrada que iluminam o mundo.

(It’s oh so quiet)

Mil novecentas e oitenta e quatro voltas na cama

(It’s oh so still)

nenhum carneiro contado

(You’re all alone)

uma reza muda onde avisas
o mundo a voltar a ser mundo
e o Mundo apenas o teu quarto, e amanhã a confusão de uma rua.

(And so peaceful until)





quarta-feira, setembro 22, 2004

Os Amantes Sem Lençol no Rosto

A culpa não é tua por tudo isto estar a acontecer: o teu grande amor à distância de um hall de entrada. Vai para mais de dois meses que sais de casa a esquecer beijos de despedida. Levas a esperança que o elevador ganhe telepatia contigo e depressa, para que não o partilhes com os novos vizinhos: um casal (até) simpático, em que só reconheces os pés dela porque cravas os olhos no chão, e quanto a ele, é gordo, murmuras.

Depois o dia perde-se de vista e percebes que o mundo é mais que o chão. Não há elevador. Não revês os pés dela. Não vês o teu novo vizinho
(gordo)
a entrar elevador adentro com o que foi, desculpa, com o que é o teu grande amor, na mão dele. Enfias-te dentro do quarto com a noite. Perto da meia-noite, mais tic, menos tac. Enches o copo com whisky e chega. Há que séculos apetece-te puro – vai para mais de dois meses –; sem água, não interessa se líquida se gelo.

Relaxas quando chega a hora em que ela volta a ser tua, não o grande amor do gordo. Sopras o pó inexistente e metes a cassete no vídeo, desencantado na dispensa, no dia em que o conheceste a ele
(- É gordo)
e reconheceste a cara dela no hall de entrada.

Agora carregas no PAUSE; deixa-a assim: aprisiona o teu grande amor no ecrã de plasma com um aceno na mão, numa qualidade de imagem a acusar uma dezena de anos, enquanto procuras o comando da aparelhagem. Não finjas que não te decides pela música. Afundas-te noite após noite com o sol-e-dó que partilharam a quatro ouvidos
(nenhum deles do gordo)
vezes sem conta que és capaz de contar.
(Nenhuma dessas vezes existia um gordo.)

Que importa se a música tem o timbre da gargalhada dela e pões-te a sorrir, ou se procuras na película ao menos três imagens onde ela prometeu um para sempre. A culpa não é tua; culpa o gordo, o governo, o sistema, o destino, a sorte malvada ou a ironia ácida da vida. Mas a culpa não é tua se em dois meses de manhãs o teu grande amor antes esquecido, desculpa, não esquecido na fita de uma cassete, ultimamente não falha a porta em frente à tua, como um relógio que à hora certa manda o cuco cá para fora.

Deixa o telemóvel desligado na mesa-de-cabeceira. Deixa bem perto a ti o cinzeiro porque fumas sempre muito durante a sessão de vídeo, além do cigarro antes e do cigarro depois. Deita-te na cama, estende os pés e não tires os sapatos porque as pessoas quando observadas num ecrã não se importam. Não atices nenhuma luz, nem a do candeeiro. Deixa assim; apenas o halo que se apresenta no quarto, agora que trocas dois riscos do PAUSE por uma seta no PLAY: primeiro ela continua a acenar, depois ris-te e ouves três
para sempre passados
talvez porque o rosto dela no elevador incrimina dez anos após essas filmagens mas pode ser o ar ensonado da manhã.

Entretanto o filme avança e sempre de modo igual e isso dá-te uma segurança, entediante, mas acima de tudo uma segurança. E no fundo a mim também vai para mais de um mês, desculpa, mês e meio, que chego a casa na certeza de que perdi o FIM. Porque é tudo tão previsível como o amanhã onde partilhamos o bom dia com os nossos vizinhos, voltas a esquecer o meu beijo de despedida enquanto murmuras
- É gordo
aos pés do teu grande amor
e volto a confirmar-te
que não o é
não é gordo
volto a confirmar que não é gordo através de um sorriso cúmplice
(correspondido pelo gordo que não o é)
vai para mais de mês e meio. Mas a culpa não é tua, amor; são os teus olhos que teimam em cravar-se no chão do elevador.


CARPE DIEM

O telefone está a tocar mas não vou atender. Dispo o sorriso robótico do dia-a-dia e meto-o debaixo do braço. Aquele sorriso com que

- Hallooooo!

peço passaportes enquanto anoto nomes de países e pessoas que nunca sei pronunciar. Os piores são apelidos asiáticos, embora ontem ficasse grega com a chegada do grego

- Yiannis Karatzas Kazantzakis

ao mesmo tempo a francesa do focinho arrebitado, a queixar a falta de papel higiénico, e lá entreguei um rolo tamanho gigante de mão para mão, negando a vontade de o enfiar pescoço abaixo e

- Hallooooo!

o telefone pela enésima vez a tocar. Como agora. Só que agora não vou atender. O dono da pousada

- Maurizio

agarrou as chaves penduradas na recepção, meia volta volver coçando a careca, os óculos demasiado escuros que nunca sei para onde olha, nem reparou que o sol já derreteu no horizonte. Saiu nem dez minutos atrás, a lançar dois beijos que nunca sei para quem são mas

- Hallooooo!

ainda demora a volta da carrinha, azul, uma lua amarela assinada por baixo, letras a itálico
(“Carpe Diem” – the hostel in Brindisi – Italy)
como que
(“Carpe Diem”)
a gozarem comigo e que me digam que não, que não é nada disso mas não me levanto. Não ouço telefone nenhum lá dentro a tocar. Deixo-me sentada nas escadas e fecho os olhos, primeiro com muita força
(depois lembro-me que posso ficar com rugas e que me digam que não, que)
a seguir fecho-os demasiado devagar. Concentro-me nos sons cá fora; uma campainha de bicicleta na estrada, o rafeiro do cão coxo

- Pavarotti

que parece tossir e não ladrar, a portuguesa com headphones a bater o lápis no caderno como se ouvisse

(-Pixies)

uma sinfonia de cigarras, a rodeá-la na relva, como que
(“Carpe Diem”)
a gozar comigo e que me digam que não, que não é nada disso mas sou surda ao telefone. Se me esforçar o suficiente talvez consiga não ouvir a música. Todo o dia, vezes sem conta, o mesmo

- Numa numa yey, numa numa yey

romeno, dizem-me, e eu acredito porque sempre falei inglês. Só falo inglês. Quando cheguei à Europa fiquei estupefacta por quase todos falarem inglês. Na América poucos arranham outra língua; talvez

- Oui

ou

- Gracias

mas não diálogos; de onde és?, amanhã vou para “não-sei-onde”, não esta gente de mochila às costas; a saber onde são os chuveiros, quanto custa o dormitório, se tem curfew ou não tem check-out. E eu respondo de sorriso

- Hallooooo!

programado como um robot. Mas agora simplesmente não atendo o telefone nem me peçam café, logo aqui com

- Expresso

o vício do café, o Prego sempre a seguir o Grazie e eu só falo
(ainda)
inglês, e por isso consegui trabalho aqui, em Brindisi. Uma pousada numa área habitacional, colunas em constante berraria

- Numa numa yey, numa numa yey

e uns vizinhos que não se queixam
(como não me queixei quando cá cheguei)
perante a constante entrada e saída de mochilas às costas, ferries amanhã para Corfu, Igoumenitsa, Patras mas
(amanhã)
enquanto a espera, relaxam por aqui. Logo aqui com

- Expresso

a carrinha que os apanha junto à estação, é sentar em bancos gastos e não se queixam
(como não me queixei quando me sentei)
enfeitiçados por letras a itálico, pelo azul que os chama e que me digam que não, que quando cá cheguei eram daqueles tempos
(“Carpe Diem”)
tempo em que lia o talão do Multibanco com depósitos dos meus pais, e sorria para a lua ainda amarela pintada na carrinha, tão amarela como a cor dos faróis, que agora noto no portão da pousada enquanto eu
(ainda)
aqui sentada e o telefone não parou de tocar. Inspiro bem fundo. Levanto-me. Ainda não tenho dinheiro suficiente para voltar a Los Angeles. Sacudo o braço esquerdo, e visto os lábios com o sorriso robótico.



Brindisi, 27 de Agosto de 2004

sábado, setembro 18, 2004

Musa Não Tem Masculino (ou Tomate Não Tem Plural)


A ti, sem porquê


Um dia não sonhei beijos em sapos para tropeçar num príncipe.

(Não foi exactamente assim.)

Uma noite não estava em casa, haviam copos e amigos, muitos ainda não conhecia, alguns estavam entre ele, quais não me lembro mas não esqueci

um beijo

e no dia seguinte

(agora sim, de dia, sábado ou domingo, o café na Marina cheio de sol, uma mesa recheada de raparigas que apontavam com os olhos a cadeira em frente à qual tinhas combinado sentar)

com um riso ao ataque dentro de mim, entregaram-me

um príncipe no sapato

(ténis, estavas de ténis)

e durante um ano e tal, a certeza de que haviam muitos sapos porque não tinha vontade de os beijar. Mas houve um dia em que o príncipe não virou sapo. Continuou príncipe. E ouviu com

- Já não sinto o mesmo

o sorriso a fraquejar

- Porquê?

(ainda assim daqueles sorrisos que quando acordam, dás por ti a sorrir também)

na despedida que ainda hoje faz-me sentir analfabeta, um chumbo de volta à primeira classe com as vogais, quem sabe reconquistar as consoantes

depois

anos depois

- Porquê?

perceber que existem musas e não musos e à falta de inspiração

(queres dizer justificação)

perceber que na primária contam cinco sentidos, não o sentido sem sentido

(queres dizer sentimento)

que ainda hoje

- Porquê?

se soubesse porquê tinhas os meus dedos colados no teu sorriso e não o deixava adormecer. Como num ontem. Ou num hoje. Ainda hoje. Ainda príncipe. Ou fosses sapo.





quinta-feira, setembro 16, 2004

Não Deixaste as Tuas Asas em Casa

“O mundo é atravessado por anjos honestos e desonestos; por vezes parece até que os edifícios são seres urbanos móveis e com vontade concreta. Um edifício caiu.”

Gonçalo M. Tavares in A máquina de Joseph Walser


É sábado e ela acordou cedo. Corre o corpo adolescente pela rua principal do bairro. O mundo é um lugar estranho, sussurra-se. Das janelas dos prédios brotam cabeças humanas como se fossem cogumelos.

Aos ombros leva um par de asas, brancas. Pondera-se se roubou-as a um unicórnio, tal a irrealidade da imagem que amputou pessoas de camas. É manhã, os carros estáticos, uns pés fazem eco pelo bairro como se movidos a energia eólica. Leva o vento no corpo, alguém responde. Acendem-se cigarros, ouve-se chamar mãe, filhos, avó, dois cães e um gato. Não parece sábado porque o bairro tem a energia das manhãs de dia de trabalho. Varandas e janelas apinhadas. Cravam-se olhos numa rapariga, a trepar as escadas de incêndio do prédio amarelo. Escolheu o menos alto, pensa-se sem o dizer.

Atingem o cume do edifício: a multidão de olhos e a rapariga. A rapariga sobe ainda mais alto: senta-se no que aparenta ser uma parabólica. Há um riso frenético, surge no cimo, e percebe-se que contem o mundo todo lá dentro. Ela vira as asas para a rua principal. Já ninguém lhe vê a cara. Estica pernas e abre os braços. Até os cabelos lembram o Cristo na cruz mas peca por ter asas, gigantes e frágeis que parecem coladas a cuspo. Grita-se do prédio amarelo contagiando assustadoramente as gargantas da população, como quando alguém boceja à nossa frente. A rapariga salta. O eco do bairro agora é feito de dezenas de pés a entrar em casa, descem escadas, abrem-se portas de prédios; a rua sofre assalto pela multidão que dispara alarmes ao acordar os carros, antes estáticos. Trocam-se empurrões. O prédio amarelo é circundado, enquanto se repete que o mundo é um lugar estranho.

Encontram as asas do corpo humano que proporcionou o acordar enérgico, e é sábado. Surge o pasmo, denunciado por oh!, ah!, e risos. O mundo não é um lugar estranho, nós é que o estranhamos, alguém escreve. Cala-se a multidão. Os risos da rapariga enfraquecem, enquanto adormece deitada num trampolim na traseira do prédio menos alto. Porque hoje é sábado e ela acordou cedo.


quarta-feira, setembro 15, 2004

Somewhere in London

Madrugada: duas e dez e não acerto o relógio à hora local. Árvores de um lado da estrada. Casas brancas do outro. São todas brancas. Imensas casas onde tabuletas exibem a mesma palavra: “Hotel”.

Quando o Lee perguntou se queria dividir o táxi nem hesitei. A mochila de repente a pesar uma tonelada e o corpo a pedir

- Hostel? No problem, man

descanso, cedendo às mais de 24 horas de vigília.

A conversa fluiu e a última viagem da noite, entre Dover e Londres, com três mudanças de comboio, tornou-se suportável. Claro que ele não falava português, apenas

- Frango

uma palavra apreendida, não sei porquê, por um amigo dele que montou tendas em Lisboa

- Rock in Rio, man

enquanto ele foi destacado para outro espectáculo. Percebi Copenhaga mas não o confirmo.

O que o Lee faz durante bastante parte da sua vida é montar tenda. Em festivais. Tem acesso aos bastidores, por erguer estruturas metálicas e arquitectar palcos de grandes dimensões; assim ganha o pão do dia-a-dia
(bem como o amigo ganha
- Frango)
e trava conhecimento com as bandas após o concerto
- Metallica! I’ve met Lars, man.

Remediei como pude o seu desconhecimento na nossa língua. Eduquei-o com todo o calão que me ocorreu: apanágio entre dois rapazes de nacionalidade diferente que se cruzam. Sou incapaz de deixar um rapaz montar tendas Europa fora, com aquela única palavra

- Frango

de possível tradução não muito máscula na língua do Shakespeare. Em troca, ele descreveu-me o seu bairro

- Somerset

algures no sul de Inglaterra. Contou-me que de Londres até casa era só apanhar um autocarro qualquer. Depois seguia a pé. Porque onde vive

- Somerset

os transportes param às 20h.

Pareceu-me um rapaz normal. Acima da temperatura que associo aos ingleses. Acima do frio. Não tinha escapatória ao sotaque british – um pouco efeminado na minha opinião – mas não o associei ao sóbrio e conservador gentleman. Mostrou-me a namorada, amachucada na foto moldada a um dos bolsos laterais das calças, com uma típica

- She’s always changing the colour of her hair

conversa de amigos meus. Como quem muda de temperamento?, perguntei, e partilhámos gargalhada com

- Like all the women

a resposta.

Depois disse-lhe que precisava descansar. Saí de Lisboa ontem à tarde. Cheguei a Paris e só visitei a Gare du Nord, onde apanhei novo comboio até Calais. Queria atravessar o Canal da Mancha. Tinha que o atravessar. Ninguém chega à Escócia de ferry sem atravessar o Canal. Nem alguém chegou à Escócia de comboio sem, infelizmente, atravessar Inglaterra e muitas vezes, ter que parar aqui. Em Londres. Por pensar em parar, lembro-me de frisar que queria uma cama. Uma pousada.

- Hostel? No problem, man.

Já percorri o quarteirão todo. De quando em vez passa um carro na estrada. Ou um táxi, tipicamente inglês. Acrescento novo item à minha lista intitulada: “Porque é que os ingleses são diferentes em tudo, não é uma pergunta”.

Lee conhece melhor do que eu, a capital onde o chá reina sobre o café, assumi. Sou o “Englishman in New York”, ou melhor, o “Portuguese in London”, pensei, enquanto ele e o taxista conversavam em amena cavaqueira como se se conhecessem desde miúdos. Ainda que o volante, no lado direito – item número quatro da lista –, estivesse entre mãos com articulações empenadas o suficiente, para serem quer do meu, quer do avô dele.

Só leio “Hotel”. Recusaram o euro (ler a minha lista) mas toda a gente é capaz de converter pounds e assumir que Londres é possivelmente a cidade mais cara da Europa. A mochila já não pesa uma tonelada. Aposto nas duas ou três. Certifico mentalmente de que expliquei a minha necessidade quando o Lee

- Hostel? No problem, man

entregou-me este gatafunho que sinto vontade de esmagar com uma mão só. Parece-me ser a sua noção de um croquis.

Esmurro a minha companhia: a mochila. Não tem culpa do não avanço até à Escócia. Somos dois sem abrigo, à força. Estacionados à soleira de uma das casas. Brancas. A estação está fechada. Abre às 05h. Possibilita que o que eram os meus pés, no agora são blocos de gelo. A madrugada é fria. Da mesma temperatura que sinto perto de um perfeito gentleman. Árvores do outro lado da estrada. Nenhum “Hostel” à vista. Um e outro e mais um e ainda outro “Hotel”; sem S depois do O. E o Lee

- Hostel? No problem, man

a esta hora em Somerset. Uma rapariga para o receber de cabelo lilás ou verde fluorescente, ainda assim mais quente

- Like all the women

que a soleira desta porta; descrita por dois adjectivos: fria e branca.

Começa a chover. Atiro à estrada uma folha de papel, na esperança que se desfaça o que se assemelha a um gatafunho de criança. Um traço horizontal imita a estrada. Linhas verticais de um lado e o que imagino serem casas do outro, em forma de rectângulos. Observo chuviscos desfazerem tinta e o papel. Já só percebo um “mailto:“leequalquercoisa@hotmail.com”; a única prova de que alguém garantiu existir um

- Youth hostel, I know man

nesta rua.

São duas e vinte e não preciso de acertar o relógio à hora local. Espanto-me. Não anoto na lista. É a mesma de Portugal. Onde encontro pousadas e uma cama num “Hotel” não está pelos olhos, nariz, boca e mais o resto da cara. A hora é a única coisa que me é familiar de momento. Grito:

- Lee we’ve got a problem. Man!

Londres, 12 de Agosto de 2004

sexta-feira, setembro 10, 2004

Inter Rail

Abres os olhos e outra vez aquela sensação de tentar perceber onde estás; endireita as costas, espreguiça-te e boceja à vontade, a cabine do comboio cada vez mais nítida, agora mais uma pessoa aí contigo

(adormeceste à saída de Santa Apolónia, na janela o dia perdeu-te de vista, estação menos estação deve ter entrado em Vilar Formoso)

outra mochila tão grande como a tua, uma rapariga jogada no banco em frente, o Bob Marley da t-shirt amarrotado até aos lábios enquanto os lábios dela
(parecidos com os teus)
a lamber de certeza segunda ou terceira mortalha, o cheiro a erva não engana, a conversa

- Portugal é campo

não engana se olhares as terras espanholas pelo vidro, o vermelho a ganhar terreno ao branco dos olhos dela
(castanhos como os teus)

mas não mordas o lábio nem te rias porque

- Enquanto dormiste fui mijar e quando o comboio parou fiquei com as calças na mão

dois anos atrás o comboio também parou, contigo na casa de banho a reler o aviso da porta: “Não utilizar durante as paragens nas estações”

logo não mordas o lábio nem revires os olhos porque

- Fiquei naquela; mijo, não mijo

ainda agora passaste as pálpebras pelas brasas e mesmo assim estás mais arrebitada que ela
(realmente parecida contigo)
sem vírgula cicatrizada no queixo, por outro lado o cabelo comprido também quase negro
(realmente faz lembrar)
não esqueças

logo de manhã chegam a Hendaya, pedes-lhe o número, explicas se ela responder que

- Não trouxe o telemóvel

logo de manhã, imaginas alguém a entrar-te no quarto, a encontrar na estante o teu bilhete de identidade esquecido
(de propósito)
no propósito de durante um mês não provares quem és
(apeteceu-te)

por isso não te esqueças: basta pedir-lhe o número do BI, e se o teu nutre-se de pó em casa, depois percebes que no agora tens outra pessoa aí contigo
(realmente parecidas, podiam confundir)

duas raparigas
em que tu és tu, mesmo sem bilhete de identidade
(anota o número do dela)
e logo de manhã continuas o itinerário com um retalho marginal em ti
porque apeteceu-te esquecer de ti
e ela também; adormeceu sem te dar boa noite.


Lisboa, 10 de Agosto de 2004
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