terça-feira, abril 26, 2005

Aleluia ao Erro

Para o J.D., pelo pormenor dos patos


“Continua a andar” – diz ele – “e sorri porque já ninguém sorri a quem não conhece.” Mentira, pensa aquela que ouviu mas nada respondeu. Ela ainda um sorriso. Reservado. Sem nada de discreto. Apenas particular. Um sorriso de destino traçado: de acordar imediato sempre que ela se apresenta a uma cidade desconhecida. Como esta cidade, pensa aquela que parece muda e que sorri.

A manhã solarenga e movimentada, na Baixa, agora. Eles são só mais uns passos, no meio de tanta gente a caminhar pelo empedrado. Ele pisa o trilho branco do passeio, ela do lado das montras, de pés na faixa negra de basalto. Entre eles uma arma. Um assalto que ninguém nota. Um trio a caminhar lado a lado a lado: ela, a lâmina fria que lhe arrepia o cóccix e a respiração, e ele. A mão dele na faca onde fermenta o medo.

Ela menos sorridente, em cor de fantasma; ele um cadáver feliz no desespero de assaltante. Juntos são a ironia de uma união: um fantasma e um cadáver acasalados por uma faca.

“Não me olhes” – avisa ele – “mas enrola-me a cintura com o teu braço direito. As pessoas esquecem-se de olhar o olhar quando há o toque. Vão pensar que nos conhecemos porque nos tocamos. Vão pensar-nos um casal. As pessoas pensam muito e depois de coar o pensamento, sobrevivem duas a três palavras-chave. “Curioso” – diz ela – “eu beijo e aperto mãos a pessoas de quem, juro, não sei a cor dos olhos”.

“Percebes-me” – ele quer gritar e cala-se. “Percebo” – responde ela à pergunta engolida por ele. E, recuperando a pigmentação da pele, ela tacteia-lhe a barriga acertando o indicador esquerdo no umbigo. O buraco que em tempos alimentou-lhes a vida. Ele estarrecido pára no passeio. Ambos são obstáculos aos transeuntes mas ela olha na direcção oposta a ele. Analisa uma vitrina de croissants e pastéis de nata e fatias cobertas em chocolate negro e castanho e branco, menos branco que os suspiros. Ele olha-lhe o reflexo da língua em passeio pelos lábios. Encontram-se no vidro.

“Vamos?” – pergunta ela. E porque é que não haveriam de ir? “Vamos” – responde ele.

Pelo vidro do café percebe-se que é deles a mesa do canto. A gargalhada é feminina. É dele a faca que corta arestas irregulares de um suspiro, que falham sempre a boca dela. Isto não acontece, critica alguém. E porque não haveria de acontecer? Entretanto ele diz-lhe: “Sabes que os patos não têm orgasmos?” “Mundo estranho, o mundo que nos acontece”, pensa alguém, mas essa pessoa chegou no fim desta história.

Take #6

O coração a rebolar-se-me pelas escadas abaixo? Apenas um susto. Mas, e no topo da escadaria? Está o meu corpo, esburacado, a sufocar perante tamanha beleza. E isto, sim, isto assusta.

quinta-feira, abril 21, 2005

Take #5


“Estou?”

“…”

“Esqueceste alguma coisa dentro do meu carro? Estou? Estás sem rede?”

“Esqueci-me de dizer bom fim-de-semana.”

“Estás parvo? Amanhã é Segunda-feira.”

“Ok, não é isso.”

“…”

“…”

“O que é que tu tens?”

“Endorfinas, possivelmente. Muita adrenalina. Taquicardia, dispneia e sedação.”

“Dói-te alguma coisa?”

“Dói. Mas acho que te posso dizer que é bonito, doer, é bom, um dom. De repente há tempo para pensar. O tic-tac bate certo. Tic. Tac. Encaixa. Tudo isto encaixa em tic-tacs dentro de mim, percebes?”

“…”

“…”

“Que droga tomaste?”

“…”

“Sim? Fala comigo! O que é que andaste a meter dentro do corpo?”

“Segundo o que tenho lido e da experiência, chamam amor.”


sábado, abril 16, 2005

Quando te Abracei Com os Olhos tu Não Sentiste


Quando ele finalmente emudeceu, ela trincou com o canino o lábio inferior. Naquela trinca, a dúvida era evidente: ou a sua gargalhada corria pelo quarto fora e ele identificava-a como portadora de uma ironia ácida (o que não é mentira), ou disparatava numa dança gestual, típica das mulheres mediterrânicas. Ambos estavam sentados à beira da cama amarrotada. Não o interrompera nem uma única vez durante o seu lamento. Talvez porque o monólogo é de um para um. Aquele tinha sido dele, não necessariamente para ela. Além do mais, durou três frases, e, mesmo que ao primeiro ouvido parecesse que não, batiam todas na mesma tecla. A prestação da casa está atrasada. A minha mulher colocou os putos no colégio mais caro da cidade. Um homem trabalha a vida inteira para se reformar quando morrem os sonhos e a vitalidade, quando não tem tempo.

Se fosse uma metáfora era um armário de esqueletos, disse ela. Ele encarou-a com um ponto de interrogação em cada olho. Ela prosseguiu: Apetece-me libertar alguns ossos e antes que verbalizes esse “Porquê?”, tenta algo mais difícil; aceita. Sei que o meu sotaque acusa que não nasci nem cresci aqui. Tempos idosos, esses. Tempos idosos os tempos em que era uma bambina. Se lá morasse ainda era uma bambina; mesmo com vinte e oito anos era uma bambina de lábios cor de lábios.

Mal acabara a frase, ele distendeu os vincos labiais e ela disse: Percebo que rias… Olhas-me a boca cravada a escarlate escaldante para não destoar das outras mulheres. Preciso de um cigarro, pensou ela, enquanto a mão dele que lhe pareceu mais gigante do que nunca se aproximava do seu rosto.
- Não me toques.
- Morfina…
- Não, não me chames. Aliás, Morfina nem é o nome de baptismo colocado pela minha madre. Apenas adoptei-o – disse ela, levantando-se nua da cama em direcção à cadeira de vime onde repousavam as roupas de ambos e um maço de tabaco, de onde retirou o último cigarro. Depois, como se ignorasse o seu pedido ou ordem, neste caso depende do ponto de vista de cada um, ele voltou a pronunciar aquele nome.
- Morfina – repetiu, em tom introspectivo. – Escolha estranha para um nome.
- Não achas que acalmo as dores e logo causo sonolência? – perguntou ela, retoricamente, claro está.

Ao entrarmos no jogo das memórias, convêm entrar consciente da regra principal: memória puxa memória. A memória é como que um sonho real. E todo o sonho tem a sua história. Alguém ao contar uma história lembra-se de pelo menos um rosto, mesmo que irreal, mesmo que desfocado, mesmo que seja o seu; lembra-se de cores, mesmo que adulteradas mas reais; lembra-se de factos e pormenores mesmo quando se tratam de histórias da carochinha. No jogo das memórias contam-se histórias. E toda a história tem princípio, meio e fim, e desvios. E são estes desvios que fazem a regra: no jogo das memórias memória puxa memória.

Tomando como exemplo Morfina; ela lembrou-se dos tempos idosos de menina, que lhe lembraram a mãe, o que lhe lembrou o seu nome, melhor, os seus nomes: um adoptivo, segundo ela, o outro que seja então o biológico, para diferenciar. E o jogo não acabou aqui. Porque embora Morfina fosse um armário de esqueletos, uma jogadora solitária das memórias – contava cada história ao silêncio do seu interior –, o que lhe aconteceu naquela noite foi o desejo de convidá-lo para o desenterro de ossos; levá-lo até algumas histórias e historietas, soterradas em poeira há muito tempo no armário da sua vida que ela construíra algures entre a alma e a razão. O motivo? Ela avisou-o de que não o perguntasse. Aceita, disse ela. Aceitemos a possibilidade de que Morfina acabou por responder pelos seus motivos, sendo desnecessário que para isso existisse essa pergunta.

No quarto as posições de ambos não se alteraram: Morfina manteve-se em pé, de frente para a cama onde ele continuava sentado, e parecia tão distraída ao ponto de não lhe incomodar ter a pele nua aconchegada ao frio da parede. Ela olhava-o não a ele, mas o infinito através dele, enquanto emitia argolas de fumo no silêncio do quarto, um silêncio que o incomodou.
- Lembras-te de quando nos conhecemos? – perguntou ele.
- Não tentes de mudar de assunto. Quero continuar a minha história.
- Não estou a tentar nada disso. Apenas lembrei-me da nossa primeira vez enquanto estivemos os dois calados. E queria saber se te lembras…
- Foi há cerca de um mês.
- Sim, mas antes da cama cruzamos os nossos olhos nesta esquina – disse ele, virando a cabeça para trás, onde através do cortinado vermelho translúcido que vestia a janela do quarto, era possível observar a intersecção de duas ruas; mais estreitas que o normal, cada uma calçada com pedras, como já foi o normal.
- Cruzamos os nossos olhos nesta esquina – repetiu ela, com o seu ar mais sério de gozo. Não te sabia leitor de romances.
- Não gozes.
- Não – respondeu Morfina. – Mas neste romance vou ser bem fiel à realidade e nem corro o risco de cair num registo lamechas. Tu cruzaste os teus olhos numa montra. Um manequim humano. O cruzamento dos teus olhos não se deu com os meus, mas com uma peça de lingerie.
- Venho ter contigo de segunda a quinta. Quase um mês sem falhar. Isto não é romance, é a vida real! – exclamou ele, subindo o tom de voz pela primeira vez quer desde o seu monólogo, quer desde que o diálogo se iniciara.
- Pois é – concordou ela. É a vida real onde não sou a tua mulher, nem a tua amante, nem o teu amor.

Ele fez-se gelo. O quarto novamente fez-se silêncio. Segundo a sabedoria popular, ele consentiu.

Depois do diálogo ganhar espírito, Morfina escorregara parede abaixo de ansiedade no ventre. Por dentro. Por fora, continuava a mesma. Mesmo no chão de joelhos encolhidos, continuava a evidenciar a força e não a fragilidade de uma mulher. Tinha um olhar que não dominava e por isso era um olhar dominador. De uma intensidade arrebatadora por ser natural. Tinha a pele em bronze permanente desde nascença fizesse sol ou chuva, o lábio inferior era carnudo como o de cima que, por sua vez, se assemelhava a asas de gaivota no momento exacto em que se preparam para levantar voo, os cabelos tão pretos confundiam-se com as noites sem lua, e uma dezena de pálidas sardas pintalgavam o nariz comprido e adunco no seu início, quando visto de perfil. Cada curva corporal encontrava-se bem assinalada, mas pouco pode competir com aquele par de olhos, pensou ele, ao descobri-los pela enésima vez à sua frente; Morfina de olho verde e outro azul. Dizem que o mar é azul mas houve quem me dissesse que era verde, pensou ele, há cerca de um mês, após a primeira vez em que se deitara com ela, enquanto nesse mesmo momento Morfina fumava o merecido cigarro do “depois”. A partir daí, ele descrevia-a para si mesmo como: Aquela que tem o mar nos olhos.

Poucos segundos mais tarde, Morfina ergueu-se do soalho e caminhou sobre a alcatifa cor de champanhe até à janela. Ele seguira-lhe os passos girando a cabeça em câmara lenta. A noite cuspia chuva grossa e barulhenta. Ela separou de um só gesto as duas cortinas vermelhas para as extremidades do varão, sem qualquer pudor de se exibir à janela somente com a veste mais primária do ser humano; ela em pele. O seu nariz esbarrou-se-lhe no vidro da janela. Primeiro apenas notou-a fria, como a parede. Depois, apreciara no lado de fora como os pingos pareciam autênticos grãos de chuva e no lado de dentro deslizava o indicador no vidro embaciado. Morfina desenhou algo. Uma bota, arriscou ele. Sim, disse ela, uma bota onde mora gente: Itália.
- E de que parte da bota saíste tu? – perguntou ele, ainda sentado na cama mas agora voltado para aquelas costas nuas que lhe pareciam ser exactamente do tamanho do seu abraço.
- De onde as cores são aguarelas e as águas têm luz: Venezia.
- Veneza… Nesta cidade também existem gôndolas, disse ele sem mentir.

Ele estudara Economia em Roterdão e, como tinha uma média e um currículo acima da média, quando atingiu a idade de Cristo conseguira um importante cargo numa multinacional que o colocara agora em Amesterdão. Assim, aos trinta e três anos, tinha a garantia de um bom ordenado, de um horário flexível e de outras tantas regalias; uma estabilidade profissional singular que tinha quase tanto de precoce como de sufocante. Chegou-lhe a apetecer ir trabalhar de calças de ganga, camisola com capuz, ténis e boné; só pelo desafio de testar se a ausência da gravata ou de um fato, era motivo válido para o despedimento. E sim, foi. No primeiro dia não, mas após uma semana, um dos directores da empresa chamou-o ao seu escritório e sem convidá-lo a sentar, disse:
- Arranje um atestado médico, invente um esgotamento nervoso ou uma varicela atípica. Depois de me cruzar a semana inteira com um skater no seu escritório, até acreditava numa febre causada por um vírus tropical! Agora, meu caro amigo, avisou o director, se o seu objectivo é ser palhaço, relembro-o desde já que não é aqui o circo de Amesterdão.

Na verdade, não era o despedimento que ele procurava mas atitudes de como saciar as suas saudades pelo desafio; quer a nível profissional, quer ao nível da sua vida particular e do seu corpo. Naquele dia na multinacional chegou-se ao acordo (admitamos que imposto pelo director que aqui ninguém é parvo), de que ele teria não só direito a um trimestre sob atestado médico, como o direito em receber apenas um terço dos seus honorários durante o seu afastamento da empresa. Obviamente que a sua mulher nem nos sonhos mais lúcidos, o imaginou durante uma semana capaz de tomar o pequeno-almoço em família de fato e gravata, e, no depois, enquanto ela levava o casal de gémeos ao colégio – o colégio mais caro da cidade, segundo o que ele contou a Morfina no seu monólogo – ele trocara dias a fio o seu aspecto formal por uma versão skater, numa casa de banho pública onde se efectuava o pagamento à entrada, colocando uma moeda na mão da velhota que já o conhecia, identificando-o: O senhor que nunca precisa de papel higiénico.

Embora todos estes acontecimentos contassem já com um mês de validade, a sua mulher continuava iludida com a qualidade de vida a que fora habituada, sem desconfiar que se por um lado as despesas da família eram as mesmas, as receitas, da parte dele, não andavam nem lá perto. Quanto à actividade dela nada se alterara: Decoradora de Espaços e não de Interiores, como ela gostava de referir. Quanto a ele, restava-lhe esperar dois meses para respirar aliviado no sufoco da estabilidade profissional, recuperando os dois terços do ordenado que o seu devaneio havia-lhe retirado pela mão de um dos directores da empresa. Sendo assim, era natural que a prestação da casa estivesse em atraso, como ele confidenciara a Morfina.

Não lhe interessava perder aquele emprego. Uma das regalias que mais prezava encontrava-se no facto de estar a viver em Amesterdão. Caso fosse ele a decidir qual a cidade europeia de identidade mais vincada, ele colocaria Amesterdão no degrau mais alto do pódio. Por isso na continuação da sua conversa com Morfina, perguntou-lhe: Qual a mais bonita; Veneza ou Amesterdão?
- O meu caso com Amesterdão não foi amor à primeira vista – respondeu ela.
- E será que alguém ainda acredita nisso do amor instantâneo?
- Acredito que no dia em que parti de Venezia, nem o Francesco quando mo tentou explicar gritando “Ti amo” para a janela do comboio sabia o que isso era. Só me apercebo de como o gostar é crescente e não imediato quando o meu irmão telefona aos berros: “Dove siete? Onde estás?”, exigindo que volte para casa, e sou incapaz de comprar o bilhete para o abandono deste cheiro – admitiu Morfina, sentada no parapeito da janela onde as suas pernas dependuradas sofriam um embalo. Era como se ela estivesse aninhada num baloiço invisível aos olhos dele.

No dia em que me despedi do Francesco, explicou Morfina, deixei-o, deixei-me; ambos para trás emoldurados em vidro numa janela do comboio. Ele em terra firme de choro escondido. Eu aos solavancos dos carris a vazar lágrima a lágrima cada ruela estreita, pingo a pingo os inúmeros atalhos – e qual deles o mais atrapalhado pelas quinquilharias dos bazares, qual deles o mais sufocado por flashes de turistas inebriados… Lembro-me de tudo porque no dia em que me despedi do Francesco não deixei para trás a memória. Não se esvazia de nós aquela sensação: de nunca desarmar do fim das ruelas, do fim dos atalhos por mais obstáculos humanos que germinassem. Eu ficava sempre com a língua quente, disse ela soltando um riso tímido, mas nunca desarmei da conquista do fim do labirinto. Porque onde os caminhos confusos acabam, era onde se abria à minha frente uma piazza daquele tamanho.
- A Praça de São Marcos – disse ele.

Morfina fez-lhe uma vénia com a cabeça; e disse: Na Praça sentia-me engolida pelos monumentos: Basílica de San Marco, Campanile, o Palazzo Ducale, onde à esquina espreita a Ponte dei Sospiri e a gôndola do velho Pablo Macchiarolli. Conheço mais de quatrocentas pontes, dizia-me ele. Mais de quatrocentas gôndolas percorrem estas águas. E eu ouvia-o, enquanto a gôndola dele distraída a respingar as asas das pombas. A gôndola do velho Pablo colhendo o meu fôlego, sempre expedita na colheita dos canais. E ao me desencostar da almofada veluda, o velho estendia a mão chamando-me: Bambina. Saltava da gôndola sentindo-me princesa ao chegar a casa, onde logo aparecia o meu irmão invadindo a minha historieta: Onde andaste? Não prestas para nada! Atirava-me à cara peças de roupa e gritos: Graças ao meu sustento, é o que é! Agora perdoo-o, disse ela em tom complacente. Ele acusa uma síndrome de irmão mais novo, mas nessa altura desconhecia que a jovialidade não impede o envelhecimento do espírito. A vida corre-lhe bem: formou-se, empregou-se e casou-se – realizou os sonhos da sua madre. A minha madre. A mãe deixada para trás ao entardecer das escadas venezianas da estação de comboios.

Atacou-o uma vontade imensa de levantar-se e abraçá-la e dizer-lhe que ia correr tudo bem. Mas agora estavam novamente num frente a frente, ambos sentados; Morfina baloiçando corpo e palavras à janela, ele ainda na cama. Por outro lado, ela nunca permitia que ele a abraçasse, não mais que um segundo. Não há registo de abraços de duração inferior ou igual a um segundo, e, se houver, esse envolver de braços é tudo menos um abraço. Por último, ele ultimamente esquecera o que significa correr tudo bem.

- E o Francesco? – perguntou ele.
- Carregava constantemente nos lábios um “Ti amo”, um sentimento não correspondido.

Aquela frase de Morfina foi uma seta que lhe entrou nos ouvidos para espetar-se no recanto cerebral das memórias. Ele próprio, no dia em que suspendeu funções na empresa, foi à procura de saciar as outras saudades pelo desafio; voltar a provocar o seu corpo, de uma maneira que há muito não acontecia na sua vida particular. Era um corpo preso na sua própria vida, mas tinha consciência da vontade e da possibilidade de alterar esse estado. Logo não era um sentimento de impotência, era, apenas, um sentimento não correspondido pelo seu corpo.

Nessa manhã, após caminhar saída em frente da multinacional, fez-se à cidade num corpo que era o seu, pronto a libertá-lo em Amesterdão como se fosse estrangeiro ali. Pela primeira vez, tomou dois pequenos-almoços; o primeiro em casa e o segundo escolheu-o no popular Barney’s Coffeeshop. Tal como Morfina fizera em Veneza, também ele percorreu canais e ruelas sem se desorientar uma única vez, mas pediu indicações a uma rapariga de lábios cercados por piercings, curioso por saber se era possível alguém falar com a boca assim. E sim, era. A rapariga explicou-lhe de referência em referência o caminho até ao Museu Van Gogh. Estava familiarizado com o facto de existirem coffeeshops aos pontapés, mas constatou que as lojas de souvenirs se atropelam, e que em qualquer recordação da cidade uma folha de cannabis fica sempre bem. Ainda foi ao Vondelpark onde se sentiu único entre toda a gente, por não ter levado nem bicicleta, nem patins, nem um simples boomerang. Para se compensar, abancou numa esplanada onde bebeu uma grande caneca de cerveja, enquanto apreciava os prédios pitorescos e tortos de Amesterdão. Até os gajos da construção civil não deixam de fumar o seu charro, pensou ele, já era hora de almoço.

À tarde voltou de confiança renovada ao Parque, porque comprara uma bicicleta e um livro. Exercitou o corpo e o raciocínio – os desafios estavam encontrados. Um encontro feliz, portanto, já que durante o último mês, era exactamente este o seu ofício; ora ler, ora pedalar, evitando suspeitas em casa; o que não aconteceria caso ficasse escarrapachado em frente ao televisor durante o horário laboral que cumpria na empresa.

E naquela noite, terá ele ido em linha recta até casa após um dia tão preenchido? Terá escapado alguma ruela à sua orientação, ou a “orientação” de determinadas ruelas em Amesterdão mudam com a noite?

Existe um lugar assim. Um lugar onde também a seguir ao dia vem a noite, mas com a noite vem a multiplicação de luzes só vermelhas, e só depois de o sol descer no bairro.

Cada luz vermelha assinala uma montra; ele sabia disto quando lá foi naquela noite. Como também sabia que atrás de cada vitrina há uma mulher em lingerie. Sabia perfeitamente que essa era a razão das ruelas encontrarem-se ocupadas por uma maioria masculina. De um lado a outro, entres esquinas e becos, homens nas ruas e mulheres nas montras. Entre eles, a noite e as luzes acesas do Red Light District.

Apesar de ter sido ali que ambos se cruzaram – olhos com olhos, segundo ele; olhos com lingerie, segundo Morfina –; ele não gostava de imaginá-la na cama com outros homens. Nem tinha que o imaginar. Sempre que se encontravam naquele quarto, ao lado da montra onde Morfina se exibia, apenas deitavam-se os três; ele com as duas; Morfina e a madrugada.

Morfina saltou do parapeito e abriu uma fresta da janela. Uma inesperada corrente de ar provocou um tilintar de guizos no tecto.
- Compraste um espanta-espíritos? – perguntou ele.
- Não, ofereceu-me um chinês. Mais um daqueles que aqui entrou com o entusiasmo camuflado, e à saída levava o sorriso mais em bico que os olhos. Ainda o ouvi ali na esquina, comentando com os que entravam: Legalização da mais velha profissão do mundo. Enfim, um suposto paraíso…
- E querias que dissesse o quê? – ironizou ele. – A tua profissão é…
- Um ponto final na hipocrisia – disse ela –; aqui há um propósito, um horário, limitações de área, entrada livre às ruas e um preço nas montras. Cada um vem de onde vem para o que vem. Olha-me – disse, de indicadores apontados a si própria –; nascida na apaixonante Venezia; reino do meu perfeito irmão e da garantia do “Ti amo” do Francesco. Tive nas mãos a realização segura e confortável da quimera! Mas não minha. Da minha madre. Aquela deixada para trás quando vim ao encontro das gordas, das magras, das negras às brancas, orientais, ruivas, as que exibem celulite e as que não comem, as com a minha idade, com a idade da minha madre, para todas, mas mesmo todas, preenchermos uma montra porque aqui temos um preço e nesse preço somos soberanas, somos realeza. Por isso, quando te ouvi monologar sobre trabalho e colégio e prestações, ouvi-te falar de problemas. Problemas; temos todos. O conto de fadas é vivido pelo Francesco com outra qualquer, outra que não eu, porque eu vivo em Amesterdão no distrito das luzes escaldantes que não destoam dos meus lábios. Eu até imagino os lábios da donna do Francesco… Ele sempre gostou de cores sóbrias.

Pareceu estar tudo explicado. Ela não era o padre que lhe exigia os pecados. Era o corpo de mulher capaz de mantê-lo na cama a adormecer os problemas. Mas isso tinha um preço, imparcial aos sarilhos financeiros dele. Morfina tinha o seu preço.

Finalmente levantou-se da cama em direcção à cadeira de vime. Vestiu-se. Contou os euros pousando-os na cadeira, sem gorjeta. A caminho da porta, sabia-a voltada novamente para a janela mas parou. Estavam costas com costas.

- Que nome deram-te?
- Madona, como nas pinturas de Rafael Sanzio; minha madre sempre gostou daquelas representações da virgem Maria com o menino Jesus.
- A vida borra a pintura, como aconteceu hoje – disse ele.
- Hoje não me abraçaste. Hoje percebes que este não é o Bairro dos Abraços.

A porta troara no quarto. Morfina imaginou-o a regressar ao lar pelos fundos, como uma criança que fugira de casa.










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