sexta-feira, abril 30, 2004

Um Dia uma Pessoa Cansa-se de Ser Criança

“indignava-me o babete e a almofada na cadeira por insistirem que eu fosse criança quando era mais adulta do que eles”,
António Lobo Antunes

in Exortação aos Crocodilos


Aqueles ali em cima da mesa a escorrer galinha pela cara são a minha família; o de bigode à direita é o meu pai, não confundir com o bigode da esquerda da tia-avó Luísa, que continuo sem perceber porque a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo, a velha tem para mais de oitenta e tal anos, tenho a certeza porque todos os anos é o mesmo bolo, todos os anos

- Luís, ajuda a Luisinha

a soprar as minhas velas e as dela, porque
(a velha não tem força nem tem dentes)
devem ter feito de propósito e ficaram todos contentes, sei que ficaram porque

- Três gerações!

quando faço anos sopro as minhas velas e as dela com a minha mãe

- Três gerações!

a chorar a sorrir, a chorar ao se lembrar

- Coincidência tão feliz

que nasci no mesmo dia que a tia dela, sem se preocupar que eu queria um bolo só para mim, com bonecos vestindo camisolas iguais às dos posters que colei no guarda-fato e com creme verde, que eu queria só soprar

- Luís, ajuda a Luisinha

sete velas e não oitenta e tal, não um bolo com uma galinha
(a Luisinha depenava galinhas na quinta do meu avô, contou-me a minha mãe

- Canja caseira Luís

quando ouviu no telejornal aquela coisa dos “nitro-fura-qualquer-coisa” nos frangos)

e creme amarelo, os campos de futebol são verdes não amarelos, o meu pai sabe que são verdes e sabe quais os frangos

- Anda cá Luís, mais um frango na baliza do Ricardo

que gosto de ver, não em bolos pai, não digas que não me fizeram de propósito

- Ora… Baptizei-te Luís porque gostava do nome, não tem nada a ver com a Luisinha

naquele dia, porque eu também não te digo que foi sem querer, não espero que percebas, nem percebes que lá por não conseguir dizer aquela coisa dos “nitro-fura-qualquer-coisa” nos frangos consigo falar, não percebes que mesmo sendo

- Faz sete anos o meu rapazolas

mais baixo que a tia-avó Luísa
(a velha não tem dentes nem mais que metro e meio)
tenho qualquer coisa a dizer, a mãe diz-te

- Ferdinando, se não ouves as palavras hás-de sentir os actos

que um dia vais sem peúgas para o trabalho e tu continuas a espalhá-las pela casa, eu continuo sem perceber porque a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo, a velha até podia não merecer, mas quando o tio gritou

- Olh’ó passarinho

atirei-vos à cara que não queria mais frangos nem

- Luís, ajuda a Luisinha

soprar oitenta e tal velas, se os meus amigos sopram as velas deles e de mais ninguém, têm campos de futebol nos bolos e não bolos com galinhas porque

- Canja caseira Luís

a velha partia pescoços na quinta do avô e todos os anos faz-lhe bem recordar quem põe os ovos, por isso um creme amarelo no meu bolo, por isso uma ave de galinheiro na minha festa de anos e nenhum boneco de camisola como os meus amigos.

Aqueles ali em cima da mesa a escorrer galinha pela cara são a minha família, quando o tio gritou

- Olh’ó passarinho

atirei-lhes com pedaços do bolo à cara e ficaram na fotografia, esta fotografia que a mãe decidiu pôr na moldura em cima da minha mesa-de-cabeceira para não me esquecer que só fiz sete anos, mas todos a tratam

- Luisinha

pelo diminutivo e sopro oitenta e tal velas

- Luís, ajuda a Luisinha

e um dia uma pessoa cansa-se de ser criança. Pelo menos eu. Quanto a eles só sei na próxima festa de anos.


quinta-feira, abril 29, 2004

A Velha do Café

A porta de vidro atravessada é fronteira entre o ar gélido que te desenhou esse nariz de palhaço. Um nariz desconsiderado quando entras no café. Ao fundo, lá está o homem que folheia páginas com cheiro a jornal. Ergue a mão e ajusta cuidadosamente os óculos, depois afaga a pequena quantidade de cabelo (da mesma cor que o teu). Inconscientemente imitas aquela carícia. Sentes os fios grisalhos gordurosos, ele não. Marcas presença pelo cheiro a mofo, oriundo das peças negras trajadas – um esforço inútil para disfarçar a sujidade acumulada.

Num movimento de caracol inicias longa caminhada. Anseias por uma igual às que aqui observas; brancas, pequenas, todas com uma asa, umas pousadas, a levantar voo, muitas acompanhadas do nevoeiro provocado por cigarros, solitárias ou a partilhar as mesas com outras. Vens em busca do sabor que a tua caducidade não alterou. Não ocupas nenhuma mesa. Os pés inchados atracam no balcão, onde dois polícias mantendo a pose, trocaram as cervejas por chávenas de conteúdo desconhecido. Suspeitas – ou talvez a certeza é tímida – que pelo toque se revelam quentes.

O teu «boa tarde» cai no vazio. Respondem-te com palavras desorganizadas das várias mesas, as mesmas ouvidas desde a travessia pela fronteira de vidro. Dos teus lábios murchos, desabrocha uma ladainha abafada pela música da rádio. Cresce-te a solidão sentida… E este café está apinhado de criaturas.

Tentas entender o paradigma imposto. Será por possuíres algibeiras rotas; com buracos fartos da corrente de ar, e por elas cessava o tilintar na caixa registadora? Importa (talvez) o aspecto das mãos; retalhadas, linhas cor da terra, unhas disformes em comprimento e dedos em largura… Calos que sobrevivem graças ao cortejo desses sacos de tralha… Será do rosário de prata (ainda vendível) que te faz comichão no peito, e apalpas de modo afectuoso? Ou talvez do terço do rosário? Aí, balança o objecto familiar das tuas súplicas. Aqui já ninguém reza . Aí balança a medalha que exibe uma imagem gasta…

Em vão, todos parecem convergir para a tua divergência. Sem direito a explicação foste remetida para a contraluz.

Alguém fala sempre contigo. Entre o bigode farfalhudo e um queixo proeminente surge a pergunta mágica do teu dia: «o mesmo de sempre?» A tua mão treme ainda mais, tal é a firmeza da boca. A mão treme ainda mais com o calor momentâneo. A tua mão treme ainda mais, agora; finalmente aquece-se o corpo ferido. Alcanças a fresta do tempo, onde a simplicidade de um gesto destrona a complexidade do pensamento ditador, do pensamento que estabelece diferenças. O teu acto é beberes esse café. Por um momento tornas-te igual a nós.

Todos os dias o teu pagamento difere dos outros – um sorriso camuflado por detrás do balcão. Voltas a ser única. Nunca ouves quando te digo «até amanhã e bom regresso a casa» porque simultaneamente pergunto-me: terás um lugar ao qual chamas de casa?

Sais com a muleta deixada à entrada, na companhia de guarda-chuvas que não são teus. São eles sempre os últimos – aprecia-los como obras de escultura, embora não estejas a sair de uma galeria envidraçada – a te perder de vista. A perder de vista esse rosto encarquilhado e aninhado no tronco curvilíneo, os pés a serem arrastados, como se receio tivessem de não sentir o chão. Desta vez, porém, movimentas vagarosamente o pescoço, e de respiração sustida despedes-te da chávena que te aqueceu; branca, pequena, com uma asa solitária pousada em cima do balcão.

segunda-feira, abril 26, 2004

Branco Sombrio

A Brites, pelo "A" maiúsculo de amiga

O quarto desenha uma oval quase perfeita. Quatro paredes circunscrevem essa fortaleza na qual te situas exactamente no centro, sob uma cobertura de tela branca. Substituíram o firmamento por esse tecto. Branco. Não tão gigante como a cama das constelações mas de tamanho desmedido para ti. Nem em bicos de pés chegas a metade. O empenho em te esticares esmoreceu; antes fingias que de manhã os dedos de um ciclope acordavam nas tuas mãos e tocavas no tecto. Branco. Colocaste estrategicamente o espelho defronte do piano. Miravas-te na superfície polida e sorrias. Quando auscultavas a Sonata n.º 11 acompanhava-te um Mozart espelhado, a tocar por detrás de ti. Só para ti. Depois dançavas – tens espaço para dançar. Circum-navegaste por todo o quarto. Piruetas. Saltos. Foste bailarina vezes sem conta, e nunca enroupaste um corpete bordado ou uma saia de tule. Muito menos sapatilhas de ballet. Os pés descalços osculavam o piso de mármore em comunhão com o tronco despido. Sempre dançaste nua. Outras vezes, também desprovida de um traje, fechavas os olhos e soltavas agudos. Risos. Gritos. Reproduzias a ária Casta Diva, atropelando as notas elevadas de Maria Callas e reunindo-as num som contínuo – tal e qual uma buzina. Novamente, sorrias para o espelho. Ao contrário do pequeno génio – Mozart surgia sempre sozinho –, vários reflexos assistiam-te. Escondias a cara emocionada atrás das mãos. Quando cessavas a cantoria, saudava-te uma multidão: “Brava Callas! Brava Maria!” Inclinavas o pescoço ora para a esquerda, ora para a direita, para acompanhar as tuas vénias de agradecimento às imagens reflectidas.

Rente à janela uma única estante mura a parede arredondada do fundo. Apenas uma estante. Personalizada. Os livros com as lombas acanhadas, viradas para dentro. Páginas outrora brancas exibem obras com recheio amarelado. Agora, gostas ainda mais delas por não estarem brancas como o tecto, como o quarto. Cansa-te o branco. Cansa-te o branco da cama; três almofadas que não amarelaram sobre uma manta cândida. E mais branco. Nas cortinas. Na luz que desafiou a ombreira da janela arrastando-se por ti. Pela tua túnica. Já não cantas nem danças. Não te deixas ficar nua. Cansa-te o branco da túnica que te encapota os pés.

Entre cada par de rectângulos em mármore, despedes-te de uma tela que pintaste com Pollock. Estão dispostas metodicamente no chão. Não as queres estragar. Recordas o dia em que partiram o espelho para caldear os cacos com a tinta dos baldes. Adoraste o facto de ele já não utilizar o pincel. Sabes distingui-las na perfeição; as que pincelaste com serapilheira, das pinceladas com a piaçá – recusaste utilizar a escova de dentes e ninguém te cedeu cordas. Mas sabes distingui-las. Sabes também que não as podes levar contigo. Prometeste deixar tudo para trás, até o piano. Logo o piano… Pertence-te a ti o privilégio de o ouvir! Estás diferente. Prometeste deixar tudo para trás.

Hoje, finalmente, deixas também para trás o branco. Abandonas tão levemente o centro do soalho marmóreo, que nem pareces tocar na pedra calcária. Quando estamos vazios os pés têm medo do chão? «Não sei». Ultimamente não tens certeza de nada.

Trespassas o portão e vislumbras a tua moradia. Tal como a luz, outras túnicas brancas desafiaram as ombreiras da janela e despedem-se de ti. Relembram a saudação do espelho: “Brava Callas! Brava Maria!” Deslizas a mão vacilante para a algibeira e retiras um lenço vermelho, onde guardaste o comprimido. Precisas de te acalmar. Encaras a palma coberta pelo tecido encarnado; a pequena pastilha e um bocado de papel. Branco. Desdobras a pequena folha e lês.

Maria:

Parece-me que após todo este tempo, é-me permitido abordá-la pelo seu nome próprio. Apenas queria lembrá-la do nosso encontro, próxima Segunda-feira.

Não tenha receio. Lá fora tudo é possível. E nem o céu é o limite para nada.

Até breve,

Dr. Neves Branco

«E nem o céu é o limite para nada», repetes, e desejas que se façam coletes de força coloridos. Cansa-te o branco.


domingo, abril 25, 2004

Buona Sera Principessa

Eu gostava de contar um segredo, não sei porquê

- eu até sou tímida -

mas sei que o quero fazer; quero contar que não cresci aqui

- Bambina

nem pintava os lábios agora preenchidos, delineados, cravados a escarlate escaldante para não destoar das outras mulheres

- eu até sou vaidosa -

e da próxima vez pode deixar de me tratar por

- Morfina

(Escolha estranha para um nome.

Não acha que acalmo as dores e logo causo sonolência?)

esse nome... Nem é o de baptismo colocado pela minha madre

(ainda enraizada onde as cores são aguarelas e as águas têm luz)

deixada para trás, no dia em que me despedi do Francesco de encontro a esta cidade.

(Mais bonita que a tua?

Não foi amor à primeira vista... acredito que nem o Francesco quando mo tentou explicar ao gritar para a janela do comboio

- Ti amo

sabia o que isso era... Só me apercebo de como o gostar é crescente e não imediato quando meu fratello telefona aos berros

- Dove siete? Dove siete?

a exigir que volte para casa, e sou incapaz de comprar o bilhete para o abandono deste cheiro.)

No dia em que me despedi do Francesco deixei-o, deixei-me - ambos para trás, emoldurados em vidro, numa janela do comboio; ele em terra firme de choro escondido e eu aos solavancos dos carris a vazar

lágrima

a

lágrima

cada ruela estreita e

pingo

a

pingo

os inúmeros atalhos; atarantados, atrapalhados, sufocados pelos bazares, pelas quinquilharias dos bazares, pelos turistas inebriados com as quinquilharias dos bazares atrapalhados, atarantados e sufocados pelos flashes estonteantes dos turistas inebriados mas... ...

No dia em que despedi do Francesco não deixei para trás a memória, não se esvazia de nós aquela sensação; de nunca desarmar das ruelas e dos atalhos por mais obstáculos (des)humanos que germinassem, de nunca desarmar do fim das ruelas, do fim dos atalhos, de nunca desarmar da conquista do fim do labirinto

(eu ficava sempre com a língua quente)

até se abrir em frente, à nossa frente, até se abrir à minha frente uma piazza daquele tamanho e

(eu ficava sempre com os olhos surdos)

era engolida pelos monumentos: Basílica de San Marco, Campanile, o Palazzo Ducale; espreitando à sua esquina a Ponte dei Sospiri e a gôndola do velho Pablo Macchiarolli

- Conheço mais de quatrocentas pontes

a respingar as asas das pombas

- Mais de quatrocentas gôndolas percorrem estas águas

colhendo o meu fôlego, sempre expedita na colheita dos canais e ao me desencostar da almofada veluda quando o velho estendia a mão

- Ragazza

saltava da gôndola sentindo-me princesa ao chegar a casa, onde logo aparecia meu fratello a invadir

- Onde andaste?

a minha historieta, atirando-me

- Não prestas para nada

peças de roupa para a cara, acusando

- Graças ao meu sustento, é o que é

um síndrome de irmão mais novo

(nessa altura desconhecia que a jovialidade não impedia o envelhecimento do espírito)

porque a vida a ele correu bem; formou-se, empregou-se e casou-se – realizou os sonhos da minha madre

(deixada para trás com o entardecer das escadas da stazione).

(E o Francesco?

Carregava constantemente nos lábios

- Ti amo

um sentimento não correspondido.)

Eu gostava de contar que não cresci aqui, não neste bairro de corpos estendidos verticalmente, horizontalmente, de corpos com vestígios de olhos; raiados, semi-cerrados, extraviados em ruelas e canais

(Como tu fazias.

Gôndolas há muitas...)

e é vê-los a desvendar universos "Lynchianos"; arrepios alternados com ardência faça dia ou faça noite, entrelaçam-se

(todo o tipo de gente)

nos prédios pictóricos tortos

(todo o tipo de drogas)

encaixados uns em cima dos outros

(todo o tipo de ideais)

e é vê-los a apreciar o bairro; a pé, em passeio de bicicleta, carro, aconchegados numa gôndola

(todo o tipo de gente)

sem falharem o meu afamado habitat

(alguns com entusiasmo camuflado mesmo sabendo que a sua imaginação será suplantada ao pisarem este território)

e é vê-los entrar em becos com saída de outros, comentando

- Legalização da mais velha profissão do mundo

um suposto paraíso

(A tua profissão é...

Um ponto final na hipocrisia.)

e é vê-los a multiplicarem-se na descoberta

com um propósito

com um horário

com limitações de área

com entrada livre

das nossas portas vermelhas luminosas, onde eu

- Bellissima

nascida na apaixonante Venezia; reino do meu perfeito frattelo

- Oggi!

e da garantia do Francesco

- Ti amo

na realização segura e confortável da quimera

(não minha, da minha madre deixada para trás com o anoitecer da cidade – a melhor despedida que Venezia me podia dar)

vim ao encontro da Bruna do Brasil, a Miriam do Canadá, até a Borecka da Polónia que pouco

- Yes

ou nada

- No

diz

- Thank you

ou mesmo das gordas, magras, das negras às brancas, orientais, ruivas, as que exibem celulite e as que não, as com a minha idade, com a idade da minha madre, para todas preenchermos as montras porque aqui

- Mínimo quarenta euros

somos realeza.

Eu gostei de contar todo este segredo, não sei porquê

mas sei que o quis fazer quando ouvi

- Se pago lá se vai a prestação

o seu problema, porque problemas

- Morfina, a Borecka apanhou clamídia

temos todos e o conto de fadas é vivido pelo Francesco com outra qualquer, outra que não eu

(eu até imagino essa donna)

porque eu vivo em Amesterdão no distrito das luzes escaldantes que não destoam dos meus lábios e

(eu até imagino os lábios dela)

ele sempre gostou de cores sóbrias.

(Diz-me o teu nome.

Madona, como nas pinturas de Rafael Sanzio; minha madre sempre gostou daquelas representações da Virgem Maria com o menino Jesus.)


O Menino que Tinha Tudo para Ser Ladrão

A minha quarta ou quinta palavra foi «bófia». Talvez por desde pequeno nos tratarmos no bairro por «manos». «Manos» deve ter sido a palavra que aprendi antes de bófia. Mas eu nunca fui contra a polícia. Os outros sim. Claro que ninguém gosta de acordar de madrugada com sirenes. Estridentes. Azuis. Incandescentes. Quer dizer, do barulho eles gostavam. Diziam que não. Mas gostavam. Corriam velozmente como emas e trepavam aos telhados como macacos. E faziam mais barulho. Eu também sabia aqueles “códigos” dos manos, embora me soassem sempre a grunhidos, e por isso ficava na janela atento à confusão da noite. Não era bem uma janela. Também aquilo não era bem uma casa… chamemos-lhe barraca. A barraca tinha um buraco quadrado na parede, feito pelo meu pai com o berbequim que pediu emprestado na obra. Dos lados verticais do quadrado pendiam dois trapos presos com fita-cola. O da esquerda era lilás com riscas pretas e estava roto em vários sítios. O outro castanho, sem riscas. Roto também. Os trapos eram as cortinas. No fundo, as cortinas eram restos dos vestidos da minha mãe que passavam para as minhas irmãs. Sempre era mais prático dar tesouradas que fazer bainhas. Por estarem rompidos é que eu conseguia estar dentro da confusão da rua sem sair do meu quarto.

Lá dentro haviam cinco camas. Somos cinco irmãos: eu, Jessica, Washington, Ussumane e Ana (nunca percebi como ela conseguiu ter este nome). Mas era o único que ficava ali o tempo todo à espreita. Fascinava-me aquele movimento. Quando disparava o distúrbio, crescia-me o orgulho de viver na Zona… Faz de conta que é a J (como no filme). E a minha rua era mesmo como nos filmes. Com os carros e tudo. De grandes marcas, escuros. Alguns brancos. Mas todos com luzes. Muitas luzes. Encandeavam as barracas e para acompanhar o cenário ligavam sirenes. As sirenes sempre foram as minhas favoritas. Abafavam todos os ruídos. Deixava-se de ouvir o tubo de escape da mota do mano Joe, os ensaios do hip-hop dos “C’um Tra Ri Ados”. Até os “grunhidos” eu não ouvia. Mas eles sim. Sempre com os códigos. Aliás, até hoje ainda não sei quem tinha o megafone mais potente; se os manos, se a bófia. Eu estou a dizer bófia mas não gosto nada desse nome. Respeitinho. Polícia. Agentes da autoridade. Se há coisa que eu sempre achei é que lá “figuras de autoridade” todos exibem. Bem me lembro… Sempre me encantei com as botas negras, altas, austeras, com atacadores de se perder de vista. Os bastões. A pistola. À noite não, mas nas rusgas durante o dia, até os óculos de sol apreciava. Na altura cheguei mesmo a estar convicto que um dos requisitos para se poder ser polícia era saber ajustar com perícia os óculos. Aqueles espelhados praticamente colados à cara. Ter o conhecimento de como encaixá-los. Qual o movimento certeiro para se situarem entre os fios de cabelo adequados, ou então, entre que botões da farda se deviam pendurar de modo que alcançassem o devido balanço no peito. Sabemos como são os putos… Muitos filmes. E a minha rua era mesmo como nos filmes. Se o meu grande momento era fingir-me barricado, o deles concentrava-se em expulsar o intruso do terreno. Vejamos as coisas assim; eu como um elemento passivo, e eles, sem dúvida, o activo.

Sabe, até lhe podia contar da minha tia que emigrou e ganhou um prémio lá fora. Mas disse que adora histórias de meninos; azuis, guardiães de ovelhas e sei lá mais o quê. Ainda por cima garantiu que à noitinha vou ser notícia…eu cá por mim posso continuar. Não me chame é de bófia e não garanto que os trapos ainda lá estejam no buraco para os filmar.Mas conte-me da reportagem… Como é que era mesmo? O homem polícia que em menino tinha tudo para…?

sábado, abril 24, 2004

Out of the Blue (ou Vicissitude do Vício)

Funga repetidamente enquanto o indicador e o polegar esmagam um cigarro no cinzeiro. O café ainda está quente. Soam acordes de uma guitarra escapulidos do rádio. Ela trauteia o início da música: “Can you tell me why…”. Ao som da melodia e de um tremer de pernas frenético, percorre na memória as últimas horas, desde a sua saída de casa.

De madrugada abandonou a alcova para acarinhar a embriaguez habitual. «Cláudia, já nem pareces a mesma com quem casei», disse-lhe, enquanto ela atirava bruscamente o seu braço para cima do lençol com cheiro a alfazema. Uma vez mais ele tentara demovê-la. Uma vez mais em vão. Ficou ali, estático, só – um pijama azul-turquesa apoderava-se de toda a essência da alfazema.

(Como poderás mostrar a cara a alguém?)

Talvez se emborcar uma garrafa de licor, pensa ela.
(Cláudia, sabes bem que qualquer vinho rasca teria o mesmo fim. Não te faças de finória.)

Nervosamente agora encara o pulso esquerdo. O mostrador do relógio teima em acelerar o tempo. A mesma sensação que tivera de madrugada, quando se inflacionou a secura pelo líquido volátil – extinta mal encontrasse as chaves do seu carro. No mesa do hall não. Na bolsa não. Nos bolsos do casaco não. Na casa de banho não.
(Deixaste-as lá na outra noite que adormeceste na banheira, hoje não.)

Acabou por levar o carro dele. Primeiro que acertasse com a chave… apercebeu-se do travão de mão ao acelerar, e não arrancou à primeira.
(Cláudia, mete a primeira… à segunda não arrancas.)

Os nervos em franja reclamaram por um bafo. Uma fumaça. Ambas as palmas suadas; a da mão esquerda desorganizada amparou metade de um quarto do volante, a direita escorregava pelo porta-luvas caótico. O seguro. O manual do carro. Uma gravata do Simão. O panfleto com a reunião de pais no colégio. (Procura o maço por debaixo do assento. Adormeces tantas vezes no carro…)

O jornal só surgirá amanhã de rompante debaixo da sua porta. Abaixo do cabeçalho estará escarrapachado um título bem negro, possivelmente a itálico e sublinhado. No intelecto constrói o título, emaranha a própria notícia. Porque sabe como tudo aconteceu.
(Tens a palavra «escândalo» como garantia.)

Lembra-se quando no pé aplicou toda a força, este por sua vez no acelerador. Uma força originada pela raiva e pelo prazer. A raiva da vida deturpada; pelo toque da bebida nos rebordos dos lábios, pelo doce escorrer na garganta, pelo quente, vibrante, harmonioso, completo, calmo e histérico, vício da bebida. A raiva por sentir prazer. Acelerou! Talvez por isso, esquecera a existência dos faróis. Talvez por isso assustou-se com a pancada. Talvez por isso atropelara um homem. Ou talvez por nada disto, mesmo praticamente à porta de casa, abandonasse um corpo – ainda quente, envolvido em gemidos – na negrura completa; do asfalto, da madrugada. Abandonou-o com um rasto de gases do tubo de escape. Atropelou. Fugiu.
(E os miúdos Cláudia? Não há explicação e alcoolemia não passa de um algarismo. Não tem cara.)

Sem saber bem como – ainda está toda desorientada – entrou na loja de conveniência e não comprou uma garrafa. Pediu um café.

O café agora frio. Com um gesto trémulo aproxima a manga do pulôver de caxemira, passando-a disfarçadamente pelas narinas. O fungar não se vai embora.
(Até os lenços de papel esqueceste no carro.)

A sua visão distorcida alucina salpicos de sangue; sangram olhos incógnitos, as paredes, mesas, sangra a chávena com café. O mesmo sangue que deixou na estrada. O mesmo sangue que seca no pára-brisas. Nem se lembra onde descansa o carro, mas, de certeza, o sangue lá está, bem como o corpo ainda jaz na estrada.
(E os miúdos Cláudia? Quem vai tomar conta deles, se tu não te aguentas mais de três horas em pé?)

Levanta-se da mesa para pagar o café. Enquanto esmaga mais um cigarro simultaneamente recorda o farrapo azul-turquesa no pára-choques, preparando-se para a chegada da polícia a casa.

- O carro do seu marido é que o atropelou…

A música do rádio chega ao fim: “Mama's trippin' daddy's slippin' “

Deixa as tuas asas em casa para o voo continuar

Existem dias reais. Dias em que falamos por onomatopeias, sentimo-nos ferrugentos e ao toque somos mornos. São dias incolores e transparentes, insípidos – não são inodoros como é a água – mas que cheiram a sono. Acordamos assim; sem melancolia, nem mágoa, ausência de dor ou saudade. E desembrulhando este acordar, esquecemos os sonhos e varremos as ramelas. Sabendo que, no fundo do embrulho do nosso alvorecer permanece aquela forma bruta e genuína de «tristeza». Levantamos voo para a nossa existência assim.
Mas há quem não te conheça. E te estranhe por não teres raiz. Insistimos em não deixar as asas em casa e levamos-te a passear num mundo ingénuo, que te acha inapropriada como se precisasses de convite para surgir. E perguntam o que se passa… nos interrogam sobre causas, motivo, razões! Querem respostas! Só temos perguntas. Porque há dias assim. Dias com bafo morno, aspecto enferrujado, soam a onomatopeias, sabem a água e cheiram a sono. Dias quase irreais…
E regressamos ao ninho. Choramos sozinhos não por vergonha. Provocas medo e ansiedade por seres só isso e tanto. Por seres a mais triste «tristeza»; solitária sem ter saudade, profunda sem conhecer dor, não há mágoa que te magoe ou melancolia que te faça companhia. Não sei se soprada pela corrente de ar ou assustada pelo barulho da chuva te refugias nele, no outro… em mim. Todos falaram e ninguém tentou ceder um ombro para ouvir as onomatopeias que causas aqui, ali… assim.
Há dias demasiado reais para as nossas asas irreais. Deixa as tuas asas em casa quando se extinguir este demorado amanhecer. E regressaremos ao mundo assim.

sexta-feira, abril 23, 2004

A insustentável imortalidade da palavra*

“Poderá condenar-se o que é efémero? As nuvens alaranjadas do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a guilhotina.”

Milan Kundera


*Dia Mundial Do Livro E Do Direito De Autor
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