sábado, março 11, 2006

A noite de Calais (1)


Trago no pulso o relógio morto. A pilha pifou. Sou incapaz de raciocinar hora ou dia do mês. Não sei se é ontem, se já é amanhã, tenho dúvidas no ano.
Há pouco espreitou-me uma cara de dentro do caixote do lixo da estação.
Estou tão próxima do relógio e de Annie: João-pestana cortou relações comigo há mais de trinta horas.

Calais







Foi de noite. Eu e o meu amigo tínhamos partilhado o táxi até à Gare Calais-Ville com o espanhol Jorge. Emparceirou-nos a evidência de nenhum autocarro a circular. Também ia ele para Paris. Encontrar-se com amigos. Desde Outubro estudava arquitectura em Inglaterra, aquele era o seu primeiro dia de férias; para nós o oitavo ou nono ou décimo dia, a terceira noitada ao relento, porque chegados à estação, portas fechadas. O momento em que olhei o relógio, apercebendo-me da morte dos ponteiros às 00h34m.

Jorge tinha a cara e o corpo passados a ferro, característica que eu e o meu amigo reconhecemos como nossa no início da viagem. Construía frases com ritmo de castanholas. Mexia-se com solidez de aço. Eu e o meu amigo não. A nossa consistência era todo metal a fundir. Entretínhamo-nos com ele, sentados. Jorge sempre em pé, decidiu ir ao centro comprar cervejas «para aguentar a seca na estação». No mesmo raciocínio pedi-lhe uma garrafa de água, grande. Acabáramos de nos conhecer e confiava-lhe cinco euros. Aguardei o troco com a mochila dele a meu lado.

O meu amigo acendeu um cigarro sem fumo porque entretanto deixara de fumar. Utilizámos as nossas mochilas como almofadas. Não dormimos, não falámos e não nos aquecemos porque a mochila do Jorge estava entre nós. Às portas fechadas da estação. O frio da noite aconchegara-se ao chão de Calais. Onde estávamos semideitados, semivitais, algures humanos. Nem a dieta de sandes de queijo, bolachas e café, aconselhada pelos nossos talões do Multibanco, fez-nos peixes lançados ao isco de batatas fritas vermelho ketchup com que Jorge voltou. Eu e o meu amigo acusávamos aquele requintado cansaço que rejeita sono e apetite.

Culpa desse mesmo cansaço, não associei a aproximação de alguém à voz que crescia do escuro. A voz cada vez mais audível aos nossos ouvidos. Perto de mais. Um refrão conhecido do meu cérebro que fui incapaz de identificar, a voz

Hello, hello
I don’t know why you say goodbye
I say hello


a repetir-se sem rosto nem nome. «Sou a Annie», disse, já distinta da escuridão, como quem atravessa uma sala de cinema às escuras para revelar-se, apresentando-se à plateia mesmo em frente à tela onde se projecta o filme.

Fácil de imaginar: a cidade era um quarto escuro com uma nódoa de luz. Até da criatura mais distraída não escaparíamos: eu e o meu amigo sentados, Jorge em pé, plantados nesse único sítio iluminado. Em ambas as margens da rua principal, somente um candeeiro aceso de frente para a estação, tomando-nos como alvo, qual holofote de nariz posto em nós. Além do nariz de luz, contei um par de automóveis de faróis activos, descabidos numa Calais deserta (ou quase). «Annie» repetiu ela, como se alguém tivesse perguntado alguma coisa. E o filme começou.

Aparentava uns quarenta e muitos anos. Vestia calças de ganga originalmente azuis, agora de cor verde acastanhado, uma camisola larga entre o cinza e o castanho com manchas de gordura, de relva e outras pretas como alcatrão, a sapatilha de um pé tinha a sola descolada, a sola do outro pé não existia, e ambas eram tão sujas como o conjunto completo. O cabelo tinha um despenteado natural, semelhante a um gigante emaranhado de cotão negro, imóvel, como se fosse parte do rosto de Annie, que parecia não terminar na testa mas na grenha. O nariz era achatado, os lábios queimados a sol e frio, os olhos eram do verde de uma miúda cigana, interessados nas batatas fritas que o Jorge alfinetava com um palito.

Tinha um corpo magricela mas o andar de um obeso, enquanto dirigia-se a nós. Sentou-se à minha direita. «Nasci no Senegal. Vocês são de cá?», perguntou-me, em francês. «Não», respondi. «Sou espanhol e eles portugueses», especificou o Jorge sempre em pé, em inglês. Annie olhou-o de frente, nas mãos, e também em inglês perguntou: «Vais comer as batatas todas?» «Acho que não», disse ele, meio atónito, entregando-lhe a embalagem de plástico gorduroso onde muitas batatas ainda se banhavam em ketchup. «Hoje só comi uma sopa de água no abrigo dos sem-abrigo», disse ela e riu-se, mostrando o esmagamento animal que ocorria na sua boca, onde pedaços amarelos se confundiam com os dentes e batatas inteiras alargavam-lhe a boca, escorrendo óleo pelos cantos dos lábios borrados por ketchup. «Hoje não vou lá dormir porque há hora para entrar e vocês são simpáticos. Além disso, alguém de certeza já roubou-me o cobertor.» O inglês de Annie era perfeitamente perceptível e foi a língua oficial daquela noite a quatro. «Devo estar em Calais há uns meses, se precisarem de indicações é só dizer, embora isto não tenha nada de especial e a praia só é agradável de dia», continuou Annie, a comer e a falar. «Faz frio junto ao mar que só eu sei. Às vezes dormia por lá. Deixei-me disso. Foi lá que me roubaram durante o sono. Levaram uma garrafa cheia com água da torneira, umas camisolas que usava como almofada e levaram-me os documentos, todos!»
- E agora? – perguntou o Jorge.
- Estou prevenida, rapariga! – respondeu-me Annie, como se a pergunta fosse minha, lançando-me um olhar igual às senhoras que me tentam converter no meio da rua com as palavras “Despertar” e “Jeová”. – Pensei – disse-nos, em tom de confessa –, na pele é que as coisas estão bem. – E deu por terminada a frase, com um arroto.

Levantou-se, arrastando-se. Parou ao lado do Jorge, de frente para mim e para o meu amigo. Levantou a camisola cinza castanho até três dedos acima do umbigo, num gesto cuidado, vagaroso, de strip tease sem roupa no chão, enquanto surgia por baixo da camisola uma outra, azul escura. Por baixo desta havia uma preta, debaixo da preta uma vermelha desbotada, seguida de uma branca encardida e, finalmente, apareceu o umbigo de Annie. Ela apercebeu-se e disse: «Bonito, não é? Há umbigos muito feios, assim – disse, exemplificando com um gesto de uma pinça arrancando um pêlo do ventre –, todos para fora. O meu é um buraco como deve ser. Não sei se têm a minha sorte» – completou, rodando os olhos pelos três. Os três mudos mas atentos. Eu e meu amigo a descobrir que é possível desprezar o cansaço. Basta o inesperado. Bastou Annie.

Annie desceu as camisolas e prosseguiu a apresentação: «Agora ando com a roupa toda na pele, percebem? Quanto aos documentos guardo-os nas mamas, aprendi este truque em Paris» – explicou, retirando pelo pescoço acima um saco de plástico transparente, dobrado à medida do B.I., que envolvia, além deste cartão, papéis que lhe pareciam ser muito importantes, por exemplo, um guardanapo com o número de telefone dos bombeiros.

Inesperadamente, recomeçou a cantar

Hello, hello
I don’t know why you say goodbye
I say hello


e sentou-se novamente a meu lado. Irritei-me por ainda não conseguir decifrar a origem daquele refrão. Não por Annie ter espetado o braço à frente da minha cara, para alcançar o meu amigo e exibir-lhe o B.I. «Não estavas à espera. Diz-lhes a minha idade», disse ela, num tom de comando. «Trinta e… dois» respondeu o meu amigo. «Trinta e dois!», repetiu ela, com todos os dentes das gengivas e mais alguns pedaços amarelos, marcas das batatas. «Não parece, é a tal coisa. Pareço preta mas também não sou.» Nisto, puxou a manga esquerda até ao cotovelo. Os braços eram magricelas, sem dúvida, contudo, mais claros que um bronzeado natural, diferentes da tonalidade escura do seu rosto e das mãos descobertas. «Mas nasci no Senegal», afiançou ela. «Têm que lá ir», aconselhou. «Tudo boas recordações até casar-me com o estupor que me levou para Paris. Giro, ele. Grande. Muito grande, rapariga» e Annie deu-me uma leve cotovelada. «Também tinha ele amor pelo mundo do espectáculo. Quanto a mim não haviam dúvidas. Eu era uma conhecida cantora pop na televisão senegalesa. Ele ofereceu-me as duas coisas: amor e espectáculo, ou seja, uma mentira duplicada que resultou em casamento. A minha mãe, que era viúva, considerou-me com dono e disse: “Vai para onde teu marido for”. Na altura, achei uma sorte o estupor querer ir para Paris e não para uma aldeia africana. Mas aqui, em França, não me deixaram cantar na televisão. Não me abalou muito a rejeição, porque andava muito feliz. Acabara de ter as gémeas, a Lucille e a Michelle, como as músicas dos The Beatles, adoro-os.» Deu-me o click evidente do grupo autor do “Hello, Goodbye”, enquanto Annie fazia uma pausa, e caíra-lhe sobre o rosto uma expressão de dor muda, das mais profundas. «Lucille… Michelle…», disse como que a chamar alguém.
- Onde estão? – perguntou o meu amigo, já metido na história.
- Culpa o estupor – disse-me Annie nos olhos, como se, novamente, fosse eu a fazer a pergunta. – Acenei a cabeça que sim e não sei porquê.
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