sábado, maio 21, 2005

Take #8

Há uma música triste.
Há uma música quase perfeita.
Há uma música de inflamável beleza, triste.
Há uma música que ora te engole ora és tu quem a engole.
Há uma música onde as notas guincham até afogarem-se no teu sangue.
Há uma música contigo lá dentro, por ti adentro, triste.
Há a música que te aperta no aperto.
Há a música dos tristes.
Triste música.
Tão triste música.

E depois não há fim, outra vez a mesma música.
E a música é quase perfeita, só.
Só. Sol.
Só. Sol. Só. Sol.
Só para doer mais um bocadinho, só a fingir que não estás só.
Só. Sol. Só. Dó. Dói. Dó. Dói-dói. Dó. Dói. Sol. Só.

Há o teu direito em estar triste.
Há uma música triste.
Em nada mais posso-te ajudar.




quarta-feira, maio 11, 2005

Take #7

Aquela a quem chamei princesa, não se desfaz em lágrimas agora que a abandono. A certeza de que sou pequenino nestas coisas. A distância entre nós é um palmo que nos atira para hemisférios diferentes. A princesa é um iceberg em crescendo. Olhos de gelo, os seus beijos enfeitiçados, fazem um sapo de mim. O chão, já é feito de mim. A princesa já com lábios de prata diz-me: “Raiva. Agora, só a raiva. Nenhuma vontade de cometer suicídio. Não hei-de morrer de amor por ti. Há-de chegar a tua vez. E eu estarei aqui, à espera, do dia em que te comam o coração”. Aquela a quem chamei princesa não se desfaz em lágrimas e não sei porquê, a mim, apetece-me chorar.

terça-feira, maio 10, 2005

Praia Formosa


O amigo sabia que ele nem sempre fora assim. O sol afogava-se nas costas do amigo onde estava o horizonte, mas o amigo não retirou os óculos de sol e ele encarou-se em duas lentes espelhadas: careca e gordo. Um deles acendeu primeiro o cigarro e os dois cafés arrefeciam com a brisa de final de tarde de Abril. As ondas espumavam de alívio porque os últimos veraneantes antecipados lhes voltavam costas, ao subirem a meia dúzia de tábuas que improvisavam degraus de acesso à praia. Uns metiam-se a si e à família, os namorados ou o cão dentro do carro, e nenhum grão de areia era transportado até casa porque a Praia Formosa é uma característica praia da Madeira onde o areal é negro, os grãos são tamanho xxl e os corpos estendem-se em toalhas que se estendem sobre calhaus. Houve um grupo que juntou três mesas para acumular doses de lapas e cervejas e um chinfrim mesmo ao lado da mesa dos dois amigos. Eles conheciam dois ou três rapazes daquele ajuntamento e sabiam que era assim. Eles também eram assim. Mas aquela era uma das tardes que o amigo careca coleccionava, tardes deprimidas e melancólicas, e ambos ignoraram a mesa ao lado com um tudo bem?, seco.

Quando andavam no secundário o amigo que ainda era alto e moreno, tinha-lhe roubado uma futura namorada que não namorou, uns beijinhos e umas voltinhas e coisa e tal, como tempos depois contara-lhe. O amigo já nessa altura sabia do seu Cabo das Tormentas: as mulheres. Ele usava grande fatia do seu tempo amoroso no pensamento; a pensar num sorriso, em cheiros, um toque, qual poeta enclausurado em amores platónicos; a não ouvir uma gargalhada feminina, sem inspirar um perfume de mulher, sem expirar sobre uma pele de mulher. O amigo jamais o compreenderia, fosse ele agora careca e gordo, o amigo sabia que nessa altura ele não só era magro, cabeludo, como os cabelos eram ziguezagues loiros e compridos e usava-os amarrados num elástico largo, provocando vertigens às raparigas que se cruzavam com ele nas ruas do Funchal, na sua adolescência. Não foi à toa que lhe apelidaram de “Bom Jaca” nesses tempos, nos tempos em que essas raparigas faziam-se mel sintonizadas na MTV, enquanto um moço loiro bem parecido sofria o drama do videoclip em que os Bon Jovi repetiam Always, realmente quase que para sempre. Desde esses tempos, ele uma autêntica estampa, sofria pela mulher da sua vida, ele que apaixona-se e concentra-se sempre numa única mulher, sofria pelo seu grande amor. E o amigo moreno e outros amigos pouco ou nada chateados e todos mais borbulhentos que ele; ajeitavam os ombros para consolo das raparigas com ziguezagues loiros tatuados no coração.

Os dois amigos, o moreno e o ex-loiro, refrescavam a memória na esplanada da Praia Formosa com esta história e o pano de fundo era um céu às manchas laranja e violeta. Lembraram-se do final desse primeiro grande amor. Ele suspirara-a durante três anos, até que finalmente foram namorados por três meses exactos. Uma proporção interessante. Um final previsto por todos um dia, um domingo fatídico apenas para ele e para a rosa despida de pétalas à porta da Sé do Funchal. Ela usaria saia pelos joelhos e os sapatos da missa, porque a mãe que era de idade avançada dizia-lhe não se visita a Casa de Deus com qualquer trapo, e depois ela escapuliria a meio da cerimónia para fumar um cigarro e ele conhecia-a e esperou-a nas escadas da Sé. Do primeiro degrau, olhou-o com cara de poucos amigos. Ele sorriu confiante. Não, não se esquecera que naquele domingo faziam três meses de namoro e galgou a escada para espetar uma rosa vermelha em frente ao nariz dela, vermelho também. O vermelho da rosa ou do nariz espalhou-se na cara dela, e quando ela disse entrega a rosa à tua namorada, tinha a boca mais vermelha do que o normal. Ele conhecia-a e ripostou ou és tu ou não tenho namorada. Aí, o vermelho fez-se vermelhão e ela só lhe disse como queiras, antes de martelar a cabeça dele que não era careca, com as pétalas da rosa desfolhada que atirou ao chão no seu regresso à igreja. Ele não percebeu, nem ao anoitecer quando o mar gemia aos calhaus e o amigo moreno tirou os óculos de sol, encolhendo os ombros. Ambos continuavam sem perceber o que correra mal ali, no segundo, terceiro ou quarto grande amor dele. Passou a mão pela careca ao dizer é karma, ao recordar a última frase dita pelo seu último amor ao telemóvel, naquela mesma praia. As férias eram de Verão e a namorada de Évora, de onde ele frequentava o curso. Tentou falar com ela a primeira semana inteira de Agosto. Durante Julho não houvera falhas de comunicação entre Madeira e Alentejo, entre aqueles dois telemóveis. De repente, ela não atendia-lhe as chamadas, não respondia às mensagens e os amigos alentejanos juravam que ela estava viva e de saúde. Até que noutro fatídico dia, por ideia do amigo moreno que novamente estava com ele, sentados ao sol nos calhaus pontuavam de 0 a 10 os biquinis ambulantes, telefonou à namorada com o número não identificado e recebeu um estou?, familiar. Imediatamente foi identificado.
- Onde estás? – perguntou ela.
- Tu sabes, na Madeira, na praia… Porque é que tu…
- Está tudo acabado. Ainda não percebeste? Aproveita e atira um calhau à tua cabeça! – Foi a frase de despedida da sua ex-namorada.

Não partilhou estes pensamentos com o amigo. O amigo sabia da história e também da sua nova paixão e do facto de esta partilhar com ele o interesse pelo esoterismo, assunto tabu para as anteriores. Isto era o importante. Aconselhado por ela de manhã comprara um livro, páginas de vidas passadas, anjos da guarda, hipnoses e o título faça você mesmo a sua regressão no CD bónus. Iria para casa, colocaria na aparelhagem o CD e o quarto à luz de vela e sombras. Desta vez, o desafio era ir além da aproximação mental da sua mais recente musa, era hipnotizar-se, regredir, procurar-se no ponto fulcral de uma vida passada, no qual o passado lhe profetizara tal martírio com as mulheres, compreender e fazer as pazes. Isto sempre foi o importante. Depois é só bater três palmas e abrir os olhos e já está, ouviu o amigo moreno de sobrolho arrebitado.

Os dois amigos arrancaram numa nuvem de terra batida já a praia estava deserta, o estacionamento ficou deserto, um deles acendeu o cigarro e disse hoje queres resolver o teu problema ao som das baleias do CD, enquanto o outro disse hoje não, depois desta conversa no café estou demasiado excitado.

quarta-feira, maio 04, 2005

Esta História Não É só Tua


Acredita que já lá vai uma dezena de anos desde que nos conhecemos na faculdade. Parecem-me toneladas de meses atrás. Calhamaços de dias atados por sisal. Dias amarelecidos, nutridos a pó e teias e soterrados algures, no inexistente sótão do meu apartamento que hoje o teu marido descobriu.

Ambos tínhamos vinte e três anos, eu acabava o curso e tu nem por isso – poderia dizer que por descuido, mas sinceramente acredito que por opção tua. Não me lembro quem se apaixonou por quem, mas haviam muitos beijos e sorrisos e abraços e eram teus os cachos de cabelo ruivo a hibernar noite após noite na minha cama. Por isso, às manhãs era retirado o pequeno-almoço e batíamos a porta metade loucos metade adormecidos, completamente atrasados de roupa amarrotada, como se fosse o final do dia e eram 9 da manhã. Deixávamos para trás a cozinha intocável, e os lençóis brancos no chão incriminavam-nos, evidenciando fios vermelho dourados – a forma como marcas território. Eram 9 da manhã, hora da primeira aula prática e íamos no meu 2 cavalos, a meia hora de distância da Cidade Universitária. Eu perseguia os ponteiros do relógio e dizia um palavrão, tu assaltavas-me a orelha direita e eu «pára com isso». Tu rias, como sempre. (Será que ainda ris muito?) Eu a repetir «pára com isso» e finalizavas a cena seguindo o ritual: acendias um cigarro, suspiravas um bafo, um olhar a mim, um olhar à janela quando dizias «amanhã posso cá não estar». E voltavas a rir sem o som do riso, quando começavas a falar de como «o curso é uma chatice, mas quero ser a jornalista que se infiltra num cartel de droga, um dia vive num bordel, no outro caça conchas a caminho de Santiago de Compostela, faz um directo transpirando lava do vulcão em erupção como imagem de fundo, vai para casa no primeiro voo da madrugada, chega a tempo de levar os miúdos ao colégio, não sem antes fazer amor no quarto ao lado, trancado à chave». Aí eu ria escancaradamente e tu também. Ficava na dúvida se acreditavas vir a ser a Super-Mulher ou se o teu objectivo era esticar-me os lábios. Depois não ligava à incerteza e adorava-te naquele momento, a alegria. O que eu gostava dessa tua alegria. Curioso, quando alguém apaixona-se. Curioso como no princípio é um labirinto mental definir o que torna tão especial o objecto amado. Agora, que nunca mais me lembrara de ti acerto no alvo: a tua alegria.

Morrias para os dias sempre aqui. (Será que ainda te lembras?) Se à primeira vista não reconheceres o sofá-cama cinzento é natural; na altura era preto. Sem rasgões. Mas não consegui desfazer-me dele. Gosto das coisas que têm vida e os sofás das lojas cheiram a novo, cheiram a plástico mórbido. Chegávamos das aulas, jantávamos qualquer coisa da família dos congelados. Sentava-me com os apontamentos e o portátil, café e cigarros, enquanto adormecias no sofá com um livro no qual lias em voz alta uma passagem de alguém que «obviamente, não faz parte do programa; fim da citação», dizias, e segundos depois um caracol ruivo esvoaçava com um ronco. O mesmo sofá onde quase choraste por finalmente sentires «eu amo-te», o sofá onde o teu marido hoje está sentado, onde diz «não sei dela, não sei quem mais procurar, ela contou-me de si, do “Amor”». O sofá onde chorei sem sal ao ouvir-te: «Não aguento isto. Ou sufoco o sentimento ou sufoco-me. Não quero morrer ainda». O teu marido no meu sofá que foi teu. (Será que acreditas?) Acredita que me pergunto porque não queimei o sofá. Este sofá para três é demais. Pergunto-me porque tentei eu, e agora tenta ele, perceber o acabar da relação se nenhum dos dois, de certeza, questionou o começo.

Ouvi dizer que desapareceras e ao ressuscitares descobriram-te casada. Não recebi convite, não acreditei. E agora o teu marido tem sede e sou eu quem serve-lhe o whisky, fala-me dos tratamentos de infertilidade e eu lembro-me dos filhos embasbacados em frente à porta trancada do quarto, conta-me a viagem a Roma e vejo-te na Sicília nos meandros da Cosa Nostra, descreve o teu trabalho de voluntariado no vosso bairro e encontro-te numa tenda da Cruz Vermelha, entrevistando vítimas de uma catástrofe natural. Esta história a três é demais – razão pela qual não consigo dialogar com ele e ando para aqui em telepatia contigo.

O teu marido agradece-me por tudo e o meu tudo foi um sofá, um «não», dois «sim» e incontáveis «hum»; a partir do momento em que contei o terceiro whisky puro a tremer no copo que treme a mão dele.

Antes de ele sair porta fora quero gritar «ela volta» mas emudece-me a verdade. Fico-me pelo pensamento: «Tu sempre foste assim. Tu nunca mais voltas». O “sempre” e o “nunca” reuniram-se e construo uma cerca de medo para a realidade. Mesmo que por pena dele, por minha culpa calo-me. Há que se iludir com a normalidade da vida. Há que construir lugares comuns; onde o sempre é demasiado tempo e o nunca, nunca se diz. E o teu marido sofre um segundo abandono. Abandono-o com a esperança num final feliz ou infeliz quando não há teimas; há histórias inacabadas. Como esta. A de vocês os dois. Como a nossa. (Ruiva, queres dormir hoje cá?)
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