quinta-feira, maio 27, 2004

Impenetrável

A culpa é do Peter Pan. De manhã, levei os miúdos a ver o filme do puto que até hoje ainda não cresceu e lembrei-me de ti, pensando realmente que pode ter sido aí que tudo começou, quando te ofereceram no nosso sexto aniversário páginas de meninos perdidos que vivem numa Terra de nome fantástico que a mãe alertava que não se deve dizer. Na verdade, os tios embrulharam-te bem; refundiram aqueles rapazinhos imberbes para todo o sempre, num laçarote dourado e papel colorido de póneis acompanhados por palhaços. Rasgaste a cobertura da prenda. Restou apenas um laçarote já não tão luzente, marcado pela sola das tuas sapatilhas de princesa cor-de-rosa, e umas bocarras vermelhas entre retalhos de cavalos anões amarfanhados na relva do jardim. Correste abocanhando com os teus dedos aquele menino que teima em não crescer, para exibires o livro ao pai, à mãe, a avó, ao Pedrinho (o teu melhor amigo) e por último à princesa azul (eu). Aquela conspiração que o pai, a mãe e a avó faziam em nos vestir iguaizinhas, ignorando o facto de que fui a primeira a aguentar com as palmadas daquela enfermeira gorda e antipática que no outro dia a mãe nos apresentou. Lá por o raio do óvulo fecundado se ter dividido em dois eu continuo a ser a mais velha. Mas não… Todas as festas de anos, para seu deleite, lá exibiam duas amostras de infantas a dividir uma boneca cremosa gigante. De certeza, também te recordas; para soprar as velas que lhe colocavam nos fiapos amarelos do couro cabeludo – digamos sem ser de passagem, que a ideia não foi muito feliz e as velas mais pareciam umas hastes – empoleirávamo-nos nas cadeiras que o pai desencantou da garagem e consciente das suas mãos aselhas, pediu ao tio José para pincelá-las a rosa e a azul (a minha).

Nunca mais deixaram de te oferecer livros. E todos os dias sentavas-te do lado de dentro do portão cinzento metalizado lá de casa, à espera da bicicleta de quatro rodas e do silvo da campainha do Pedro, enquanto no nosso quarto assisti vezes sem conta ao casamento da Barbie e do Ken (talvez por isso casei-me, tu não). Quando chegava a cabeça de caracóis loiros que se metia entre as barras férreas, de olhos fixos em ti, encarnavas uma Wendy de livro aberto sobre o colo a contar-lhe histórias como se o teu amigo quisesse fazer jus ao nome e fosse ele o Peter Pan. Mas não era. Se fosse, quando a família deixou a vila, o Pedro tinha voado até à sua contadora de histórias particular. (Naquele dia até eu desejei que ele tivesse pensamentos felizes e o pó de fada.) Não tinhas permanecido tardes inteiras acocorada de livro escancarado para quem passava na rua, na expectativa daquele tilintar singular, quando o único “Sininho” que te apareceu foi a estampa da rapariga com asas que fitavas ao repetir, “eu acredito em fadas”, o dia inteiro ouvia-te:
“eu acredito em fadas
eu acredito em fadas
eu acred…”

Hoje de manhã, antes de deixar os miúdos em casa dos nossos pais, levei-os ao cinema e finalmente baptizei a culpa: Peter Pan. Por isso, já não me espanta que tenhas organizado em tua casa este reencontro, “os bons velhos tempos”, disseste tu, e como sempre os teus amigos no jardim e tu dentro do quarto separada da festa por uma porta de vidro. Perdeste a Ana a relembrar a vez em que foste apanhada com ela a fumar no Museu da Marinha, porque fizeram disparar o alarme de fumo, e o Duarte a arranhar na guitarra o “Black” dos Pearl Jam que te faz perder o tino. Avisava-te que o Chico já emborcou uma dúzia de cervejas e com as latas te construiu uma pirâmide paralela à casota do cão, que por sua vez está com o uivo fraquejado; o que me leva a suspeitar a existência de cevada fermentada na tigela do canino. Pois continua envidraçada desse lado; a enrolar o cabelo e a amarrá-lo com o pauzinho chinês, acende um charro sozinha após colocares o “Crazy Mary” e agarra-te a essas folhas de escritos que é só o que fazes. De modo que, eu Nunca (sim, o nome da Terra desse menino) vou encher a estante dos miúdos com centenas de livros e tu livra-te de impingir o teu “Peter Pan” que observo na tua prateleira de literatura infantil. Porque eu quero que os teus sobrinhos percebam que vivem na Terra e não no “planeta do Nunca”, que pode bem ser o nome desse sítio de papel para onde foste viver numas das tardes em que casei a Barbie e o Ken, enquanto te despedias da mãe, do pai, da avó, do Pedrinho e de todos os amigos, e por último da princesa azul, repetindo “eu acredito em fadas”, comigo a perder-te e a deixar de te ouvir:
“eu acredito em fadas
eu acredito em
eu acredito
eu.”

domingo, maio 23, 2004

Lusco-Fusco

Gosto de te ver dormir, entesourado de barriga para baixo imprimindo uma cova de linho nos lençóis, porque fico a sorrir para um sorriso metade nos lábios metade amachucado na almofada e além disso não ressonas. Por isso encolho-me sentada e agarro os joelhos no meu lado da cama só transposto por uma das tuas pernas enquanto a outra apanha ar fora do colchão. Não sei se sabes, mas ficas sempre tatuado por um cabelo meu e quando respiras esvoaça o fio preto que volta a aterrar entre a tua pálpebra e a vírgula cicatrizada que tens no queixo. Certifico-me sempre que tenho o teu cheiro a sono ao escorregar os cinco dedos pela cara. Não sei porquê, mas agora consigo realmente acreditar que existe a tal cúpula envidraçada guardada a arco e flecha por Artémis, como escrevinhaste em poema nas costas da conta dos pastéis de Belém enquanto lanchávamos esta tarde. Estavas também despenteado, logo não foi por isso que nos vi sob vidro rachado entre estilhaços e uma seta no chão. Assim saio de mansinho às escondidas de Morfeu enquanto dormes e sonhas porque de certeza, nos teus sonhos amanhã eu não fui embora.

quinta-feira, maio 20, 2004

Lágrima*

Ao Zé, pelo caso sério do acaso



(Cheia de penas
Cheia de penas me deito)

A rapariga saiu de casa como um autómato. As paredes do quarto tornaram-se muralhas e só a faziam sentir-se mais aflita. Queria mesmo descansar. Esquecer-se que a seguir a uma inspiração vem uma expiração. Voltar a viver sem lhe ocorrer que vivia. O bater da porta soou a um galho partido. Um estalido, nada mais. A vizinha espreitou pela porta entreaberta, metediça como sempre. E embora ela não soubesse, a rapariga sentia o respirar que a velhota julgava camuflado pela porta. Mal sabia que a garganta a atraiçoava e ouviu-se no corredor o seu ladrado. “Rapariga estranha”, começava ela, “Onde já se viu não sair de casa durante uma semana e ouvir todo o dia o mesmo sol-e-dó? Mais valia continuar com aquelas músicas de doidos”.

(E com mais penas
E com mais penas me levanto)

Prosseguiu o linguarejo tal e qual uma torneira que não se consegue fechar. “Já tenho o ouvido rachado, logo eu… A moçoila nem tinha nascido e já eu ouvia esse fado, desde que me lembro de ser gente; ai que saudades dos arraiais no adro da Igreja de Santa Maria, ai a minha Vila Nova de Santo André!”

(No meu peito
Já me ficou no meu peito
Este jeito
O jeito de te querer tanto)

Eram nestas alturas que a rapariga aplaudia interiormente morar em frente à D. Camélia. As suas personagens favoritas eram as “D. Camélias” deste mundo. Porque assim, ela podia sempre desvendar novos capítulos sem que precisasse de consultar uma única folha impressa. Também o livro daquela vida não cabia no caos da sua bolsa. Foi aí que a rapariga pensou que dificilmente as vidas davam livros. Quanto muito páginas de vida podiam dar um capítulo e capítulos de vida podiam dar um livro. No entanto naquele dia a rapariga não deu palmas dentro de si perante o calhamaço de páginas sentenciados pela vizinha.

(Desespero
Tenho por meu desespero
Dentro de mim
Dentro de mim o castigo)

A rapariga precisava de respirar. Mesmo consciente do contínuo trabalho das esponjas pulmonares, desde há uns dias para cá que se sentia a sufocar. Quando o elevador parou no rés-do-chão, o que se deixou ficar uns segundos lá dentro, era o autómato que partiu um galho ao fechar a porta. A rapariga deixara de ser rapariga. Os primeiros sinais desta metamorfose surgiram quando começou a parar no tempo. A “paragem” era o resultado físico por fugir para algum lado sem mover qualquer músculo ou nela se eriçar um único pêlo.

(Eu não te quero
Eu digo que não te quero
E de noite
De noite sonho contigo)

Sentou-se no carro. Acompanhou o som da ignição com um suspiro irónico – denunciando um daqueles sorrisos embrionários que jamais se manifestam corporalmente.

(Se considero
Que um dia hei-de morrer
No desespero
Que tenho de te não ver)

Tinha que ver, ouvir, cheirar e se possível sentir o mar. E por isso a rapariga caminhou naquele entardecer sobre o muro de pedra no Cabo da Roca. A típica ventania investia no roubo do seu cachecol negro, atado por um só nó ao pescoço. Fechara os olhos quando a luz do farol iluminou o seu globo ocular.

(Estendo o meu xaile
Estendo o meu xaile no chão
Estendo o meu xaile
E deixo-me adormecer)

A rapariga passou a língua pelas rachas labiais. Tinha ambos os olhos mirrados e o rosto igualmente árido; a favor da seca dos canais lacrimais, a favor do vento exterior. Sabia que para conseguir chorar precisava de um pensamento triste ou, então, rir até se cansar. Mas não se lembrou de nada suficientemente doloroso ou eufórico.

(Se eu soubesse
Se eu soubesse que morrendo
Tu me havias
Tu me havias de chorar)

Acabou por se aperceber que o alívio não viria pelo choro nem por uma dor de barriga. Concentrou-se nos gritos do mar lá bem no fundo, bem longe do muro de pedra. As ondas lutavam incessantemente pelo escuro das rochas, do mesmo modo que o vento ainda teimava em usurpar o cachecol negro da rapariga.

(Por uma lágrima)

De repente lembrara-se do comentário da D. Camélia, “rapariga estranha”, e achou-o hilariante. Riu até a dor de barriga, até se cansar, até se aperceber do seu estado eufórico. Depois a rapariga quis também chorar. Mas aí, novamente já não se conseguia lembrar de nada. Foi ainda há pouco, que pensou num bom capítulo da sua vida que podia dar um livro. E agora, finalmente, uma litografia de um rosto húmido e não seco e os gritos do mar
lá bem no fundo
os gritos do mar, lá bem no fundo, numa luta incessante pelo escuro das rochas e pelo cachecol negro da rapariga.

(Por uma lágrima tua
Que alegria
Me deixaria matar)

*(Amália Rodrigues / Carlos Gonçalves)


quarta-feira, maio 19, 2004

À Falta do Metro Encontrei uma Caravela*

Pessoas transtornadas. Do lado esquerdo Cais do Sodré. Mais do que nunca uma filigrana de seres, ou sobras de seres, porque para muitos o cansaço vence a ilusão de que permanentemente nos lembramos que estamos vivos. 18:46. A esta hora entrelaçam-se os sequiosos; da cama há muito fria, do sofá mesmo que roto – “não o troco por nada”, balbuciou há pouco o septuagenário que ainda não encontrou lugar para se sentar, podia estar a falar do sofá, até podia – da mesa já posta ou das panelas que começam a estranhar o descanso prolongado. Do lado direito Telheiras. Pessoas ansiosas. Em cada ontem é o desrespeito quase total pelos avisos com cigarros esventrados a traços vermelhos, hoje, não estou na estação: é o cais da fumaça.
(Acendo um cigarro.)

Hesitações. Acumulam-se restos e restos de seres no subterrâneo.
(Devaneio momentâneo: talvez se nos fundirmos conseguimos a essência de um Ser.)

Continuam a atravessar as portas de setas verdes. Outros questionam-se repetidamente se a devem voltar a atravessar no sentido contrário – eu não; comprei um bilhete só de ida. Fui abordada pelo homem de cabelo rapado, magricela, envergando óculos fundo-de-garrafa na cara e colete amarelo no tronco. Nas mãos segura a revista que para sua surpresa rejeitei. Não o censuro; se usasse aquele colete amarelo também confiava que o impingir da “Cais” desta não tinha como falhar.
(Acendo o segundo cigarro).
Nem nas horas de ponta vejo tanta gente. Será porque aparecem/desaparecem à pressa alucinante com que as portas abrem/fecham no metro. Como é possível. É, segundo o letreiro luminoso acima da minha cabeça: “Por motivos de ordem técnica, encontra-se de momento interrompida a circulação nas linhas amarela e verde. Não é possível de momento prever a duração da interrupção.”

Ritmos respiratórios distintos e descoordenados. Dois polícias que podiam ser gémeos passeiam-se rotineiramente entre a esquerda e a direita com o passo também rotineiro; duração de três minutos e vinte e dois segundos entre as placas Cais do Sodré e Telheiras. O sexo representativo do Instituto Superior Técnico ecoa graves nas paredes da Alameda subterrânea. Uma típica “tia” a meu lado ao telemóvel: “Adelaide, a menina já comeu?” Do outro lado; dois pares de olhos fixos de mulheres negras perante os dois metros imobilizados. Cochicham algo que não percebo, acabou em “não falta muito o Euro”. Um rapaz a correr de bolsa a tiracolo cruzou o olhar com o meu. Olhares desviados.

(O terceiro cigarro.)
Tentaram cravar-me tabaco e usei a desculpa de ser o penúltimo. Apercebo-me que os telemóveis têm rede cá em baixo, “há sopa no congelador”, disse a mulher de fatiota à executiva, encaixada entre um casal de namorados e o septuagenário do sofá roto que finalmente se sentou. Apercebo-me do gelo solitário no meu congelador e nenhuma sopa, dos azulejos escondidos do Infante D. Henrique e da sua caravela (de 1997!), o casal de namorados abraçados noutra estação em que o metro não parou, em como esta noite dormi quatro horas e a minha cama fica na linha azul.

Do lado direito Telheiras e do lado esquerdo Cais do Sodré. Em ambas as margens uma (mesma) filigrana de pessoas desorientadas. Eu sentada num muro de mármore e um amontoado de seres alheios à minha tentativa de imobilizá-los num rascunho. Alheios a tudo, menos ao metro que parou. Substituíram a pressa do corpo pela pressa do pensamento: ninguém pergunta e se um dia o metro pára mas porque o metro parou. Talvez paramos porque nos obrigam…
Em minha direcção vejo um dos polícias que podiam ser gémeos, deve trazer o aviso para saltar daqui, não sei mas deve vir aqui dizer para


* Estação da Alameda, 18 de Maio de 2004


segunda-feira, maio 17, 2004

O Cântico Mudo da Sereia

A ti, que só choras quando está vento.


O sol refugiava-se no horizonte e nada se ouvia além do arrastar das ondas; ora contra a areia, ora de volta ao mar. Ricardo, ao enfrentar a praia, decidiu esconder as mãos nos bolsos e entregar os olhos ao areal enegrecido. Caminhou apreciando a certeza dos pés sobre areia molhada, como se o cérebro fosse submisso àquela marcha. A solidão de sempre teimava em o engolir para dentro do próprio corpo. Vazio de hesitações, continuou, confiante de que nem uma pegada dos seus vinte e seis anos sobreviveria ao marulho salgado.

Um vento angustiado implicava com a sua face – era imperceptível de que ponto cardeal surgia. Ricardo retirou a camisola aninhada nos ombros, enterrando queixo e lábios juntamente com o pescoço na gola alta. Instintivamente fechara os olhos para se proteger da poeira arenosa, não tão depressa, porém, que não reconhecesse um vulto na praia. Sem erguer o olhar, parou abruptamente ao aperceber-se do que tinha visualizado.

Perante Ricardo erguia-se uma figura imóvel. Abriu os olhos, aproximando-se para a observar. Tratava-se de uma construção em areia, representando um ser lendário; com formas harmoniosas a esculpir o tronco de mulher, e coberto por pequenas lâminas granulosas em relevo (imitando na perfeição as escamas de um peixe, desde um mínimo umbigo até à barbatana). A figura era-lhe familiar. Embora não fosse o arquitecto de obra tão meticulosamente projectada, aquele encontro eriçou-lhe a penugem do corpo e gelou-lhe o abdómen. Aliás, se havia recordação de infância que nunca o abandonara, era o dia em que as suas mãos – apenas com seis anos de existência – deram vida a uma sereia em terra. Tentou evocar o aviso da voz maternal:

- Olha que elas pertencem ao mar.

E pertenciam. O desapontamento do dia seguinte

- Ricardo, a sereia foi com a maré

assim o demonstrou. Não se distinguia uma única escama no areal. No entanto, ainda se lembrava quer da metade peixe, quer da metade mulher.

Conseguira abstrair-se momentaneamente do seu intuito naquela última noite de Verão. Por três meses o mar retiniu desafinado. Na verdade, durante toda a estação a maresia pareceu-lhe inodora. As vagas atracavam insípidas – pareciam ter perdido o sal, abandonado a espuma. O sol desapaixonado tinha cedido o mínimo de calor, e noite após noite, reflectia-se um luar quase incolor no espelho oceânico. Ricardo sabia que o Outono seria também agridoce. E se no meio por vezes está a virtude, noutras resume-se a um impasse. Talvez por isso, o cansaço da transparência dos dias levara-o a sucumbir.

Apesar do avassalador sossego no areal, a excitação interior não lhe permitia colocar as ideias em ordem. «Elas pertencem ao mar», dissera a mãe. O real era-lhe frígido, e agora também sarcástico. A criatura que lhe despertava vida no pensamento era duplamente irreal; além de composta por partículas minerais inanimadas, simbolizava um mito: o cântico que atraía navegantes. As sereias nem existem, murmurou Ricardo.

Dirigiu-se à rocha húmida que ladeava a escultura arenosa, sentou-se e pôs um cigarro nos lábios. Impunha-se-lhe concentrar no seu objectivo: entregar o corpo às ondas. De braços cruzados balançava-se tentando confortar-se a si mesmo. Uma memória inscrita há vinte anos atrás acordara do arquivo da sua mente, e, por momentos, permitiu-lhe o fluir de uma sensação. Como queria esvaziar a dor para libertar-se e voltar a «sentir»! Mas existe cura para uma ferida que não sangra, nem se vê? Ficou ali, sentado, tentando desemaranhar os fios do pensamento.

Pôs a descoberto o tremor da mão ao atirar para o lado a beata do cigarro. Levantou-se. Despiu-se. Recolheu a sereia do areal com a camisola. Depois elevou-a ao nível do rosto, suspirou e fitou-a pela última vez. Com a sereia nos braços correu em direcção ao mar.

Ainda hoje dizem, talvez o ponto acrescentado na narrativa deste conto, que nessa noite de mudança de estação, se ouviu um estrondo: um corpo caído na água. Em terra ecoava um choro, mas de um outro corpo, ensopado, ajoelhado na areia. Um corpo. Um homem. Um nome. Ricardo. Abafou-se o arrastar das ondas e calou a praia. Não se ouvia nada. Quando um homem finalmente chora não se ouve mais nada.


quinta-feira, maio 13, 2004

Os Sinos Tocam como Antigamente

Coincidência? O Renato a dar catequese na igreja lá da aldeia. É que mal a Ariana lamuriou-se dele à noite em casa, “coitado, estafado e sem tempo para nada”, aproveitei para o Renato me retribuir um favor, aliás, de certeza notaste o sorriso do meu Chico ontem, daqueles sorrisos paralisados com vontade própria que se prolongam por um segundo e mais um segundo e mais um, em que situação ou comentário por mais disparatado que seja desperta gargalhada, e bem tinha razão porque

- Três horas!

ontem, de uma vez por todas, cansei-me de todas as vezes que fazíamos amor

- Desta vez aguentei mais

em que eu aninhada no peito dele e ele

- Diz-me o tempo

a olhar para o meu relógio, a cronometrar o seu desempenho como um puto vidrado na playstation e a bater recordes, pois era o Chico tal e qual, sem tirar nem pôr, suados na cama; eu de braço direito a puxar um cigarro, ele a querer

- Diz-me o tempo

o meu braço esquerdo flectido a encarar os ponteiros desde há um ano atrás, no mês passado, nas últimas semanas, todos os domingos; a respeitar religiosamente a sirene do meio-dia do quartel dos bombeiros, a propósito, lembras-te do filme com o jockey a cavalo ouvindo o tiro da pistola e a fazer-se à pista?, pois era o Chico tal e qual; soava o meio-dia e era o nosso disparo

- Ana, eu aguento, havemos de bater um recorde

para no fim, escarrapachados no colchão e num terço de lençol que não fugiu da cama, ter que

- Diz-me o tempo

encarar o meu pulso esquerdo, até que ontem; o Renato na igreja lá da aldeia
(a Ariana
- Coitado, agora até aos domingos dá catequese)

eu a aproveitar para ele me retribuir um favor, decidida a dar ao meu Chico o tempo que queria ouvir, sabes como é; há que contornar as situações – já a minha avó repetia

- Sessenta anos de casamento, sessenta mil momentos de imaginação

ao folhear álbuns amarelados desde o meu avô miúdo à marinheiro, passando pelo soldado em rapaz até o uniforme de polícia (já casados), quando nós na cozinha; eu a molhar a côdea do pão na gema do ovo, a cheirar o alecrim que ela queimava para afastar o “mau-olhado”; ritual que antecedia o retirar do seu maço de tabaco do fundo falso da gaveta dos talheres, ela a olhar para mim a cantarolar

- Aninhas, imaginação! Muita imaginação

piscando-me o olho à espera das badaladas da igreja a marcar as “três” porque

- Os sinos não falham

todos os domingos o meu avô sentado no parque a jogar à bisca e quando

- Dooong… dooong… dooong…

percutia o badalo, era hora de apagar o cigarro no forno a lenha e queimar mais alecrim, só depois de disfarçar o cheiro a tabaco na cozinha lá bebericava o café da Venezuela, e outra chávena já pronta sobre um pires com duas pastilhas vermelhas e

- Os sinos não falham

o meu avô a entrar pela cozinha adentro

- Cheirinho a alecrim

para tomar os comprimidos das três da tarde.

Até que ontem, de uma vez por todas, pus término a todas as vezes que fazíamos amor religiosamente
(não a posição de missionário mas a acatar com a “partida” dada pela sirene dos bombeiros ao meio-dia)

depois suados na cama; ele a querer

- Diz-me o tempo

o resultado do seu desempenho, eu a dirigir-me à casa de banho fingindo ter lá deixado o relógio, os meus dedos a cumprirem o toque combinado para o telemóvel do Renato, os pés voltando ao quarto quando

- Dooong… dooong … dooong…

o som das pancadas metálicas e o Chico

- Três horas!

todo contente com o seu recorde, eu a conter o riso já com trocadilhos

- Quanto ao tempo está a chover lá fora

imaginando o Renato à chuva, todo pingado a tocar as campânulas de bronze adiantadas em duas horas, o Renato na torre da igreja lá da aldeia

- Por volta da uma da tarde; dás um toque e dou três badaladas

quando apareci na catequese a aproveitar para ele

- Os sinos não falham

me retribuir um favor sem perceber peva de alguém querer adiantar o tempo, mas também nada perguntei quando havia me pedido para comprar lingerie ditando um tamanho de soutien (pelo menos) dois números acima do da Ariana, claro que pode ser tudo da minha cabeça, como cantarolava a minha avó:

- Aninhas, imaginação! Muita imaginação.





segunda-feira, maio 10, 2004

Uma Vida entre Dois Copos

Sentei-me numa mesa quadrada amparada por dois bancos. Escolhi o que tinha uma almofada no assento. Apoiei os ombros em ambas as paredes que se enfrentavam naquele recanto. Um espaço vazio separava-me as costas da parede e a minha coluna vertebral estava em perfeito paralelo com a recta da esquina. Acendi um cigarro. Mas não queria estar ali. Simplesmente nem queria ter saído de casa.

(Há momentos em que os nossos melhores amigos fingem não compreender que a confusão de uma rua empurra-nos mais para o fundo que a solidão de um quarto.)

Lá fora vocês; entre a miscelânea de caras, estilos e sotaques que ornamentavam a entrada do bar. Do lado de dentro apenas o pé direito do Duarte, encostado à porta, investindo num pequeno-almoço com uma loira oxigenada. Eu encostada àquele canto.

Ontem à noite a amálgama de odores acumulou-se nos meus poros, o whisky envolvia bolha a bolha a água com gás que entornei no meu copo, e aquela música de volume acentuado fez com que o meu coração já não batesse à sua frequência. O ritmo cardíaco foi substituído pela cadência; da melodia marginal e dos risos histéricos provenientes do casal que ocupou a mesa ao lado. Largavam gargalhadas insuportáveis; destruíram pouco a pouco a bruma essencial num encontro entre um homem e uma mulher – tal e qual desapareceu bolha a bolha todo o gás da água no copo. Esmaguei o cigarro. Fechei os olhos; até o luar feria-me.

Continuei com a espinha tal e qual um fio-de-prumo. Em momento algum quis voltar a abrir os olhos. E de repente aquela voz grave:

- Sabes que dia é hoje?

Não respondi.

(Por vezes o cérebro fornece imagens mesmo com a visão cerrada - acontece-me diversas vezes quando caminho no limbo do sono. Mas nunca o meu sistema nervoso proporcionara-me vozes. Assustei-me; os casos relatados são na sua maioria associados a distúrbios mentais ou a “crendices” espirituais.)

A primeira questão não veio solitária.

- Sabes que horas são?

Apeteceu-me responder para não se preocupar com tal facto, uma vez que facto é que era mais “tarde” do que quando formulou a pergunta. Facto, era que depois daquele luar viria o astro-rei e depois do dia voltava a noite e nem eu ou ele conseguíamos parar o bailado viciado da Terra com o Sol. Factos sem dúvida; eu sem vontade de abrir os olhos, ele não tinha relógio. Mantive-me calada.

- Achas que o tempo é ambíguo?

Um monólogo (talvez) desenrolar-se-ia fora do meu corpo – iniciei o diálogo ciente dessa possibilidade. Não precisava de abrir os olhos. Nem queria. Disse-lhe que o tempo sempre teve e possivelmente sempre terá a mesma duração; o número de dias, de horas, de segundos. O tempo dos outros. O meu tempo não. Era possível que tivesse vivido anos com 365 dias, dias de 24 horas, horas de 60 segundos. Era possível. Não me recordava. Sim, o meu tempo era ambíguo; sem princípio e sem meio, apenas com um fim. “Não vivo o meu tempo…”

- Sobrevives no tempo dos outros? – Interrompeu-me.

Tornava-se cada vez mais assustadora a irrealidade do que ali se passava. Ao invés de enfrentar o banco oposto ao meu, certificando-me da presença de um outro corpo, perpetuei-me embrenhada no pardo como se estivesse privada da vista. Ele continuou:

- Não abres os olhos… Magoa-te o Mundo?

Fiquei perplexa. Senti pedregulhos de gelo a rolar pelo corpo; arrepios em todos os ossos do esqueleto. Uma lágrima espevitada quis fazer-se à minha bochecha. Alguém invadir o nosso íntimo sem convite é como borrar a pintura do nosso exterior. Controlei-me de olhos bem fechados. E repentinamente – tal como apareceu – a voz grave cessou as interrogações. Sumiu-se.

Demorei alguns segundos até conseguir focar e absorver o panorama do bar.
(As pestanas tocavam-se repetidamente.)
O cheiro. A música. Lá fora, vocês: Ariana, Francisco, Ana… Do lado de dentro o desaparecimento do teu pé direito, Duarte, e de ambos os pés da loira oxigenada. Do lado de dentro as mesas; a do casal ao lado, a minha. No centro do cinzeiro a beata que tinha esmagado. Um copo com vestígios de whisky e outro cheio, separados por uma base para copos toda rabiscada, que memorizei na íntegra:

Galileu quando desmentiu que a Terra não girava em torno do Sol disse: “Mas que gira, gira…”

Até o luar faz-te confusão. Não me parece que possas meter uma cunha a um dos deuses para puxar o fio do candeeiro e apagar a lua. Mas que vives, vives.

P.S – Este copo é por minha conta.

A vida de alguns dura um livro. Talvez a nossa sentados no café ou a vossa ontem à porta do bar. A minha nasceu ao fechar os olhos num canto, desfez-se em cinco perguntas e morreu entre dois copos.
E nem sei quanto tempo durou.

sábado, maio 08, 2004

Porquê, "Porquê"

Esta noite, por diversas vezes tive que me confrontar com os ponteiros do relógio de tic, tic, tic metódico, para me aperceber “às quantas ando”. São 4 da manhã. Por vezes, não sei bem como tudo acontece, como começa, desenvolve, e no fundo acabo somente por ter a certeza de um fim. Por vezes tenho que me convencer a mim próprio, como se um outro Eu quisesse seguir caminho diferente: acreditar que é tudo demasiado complicado. Sou um ás em tecer teias de ideias entupindo os hemisférios cerebrais; emaranho situações e confronto-as com “existencialismos”, suposições e imprimo milhões de pontos de interrogação após a palavra “Porquê” – Admito. E é-me mais fácil, bem mais fácil do que admitir que por vezes (muitas vezes) consegue ser simples, se sentido.

Esta tarde sei que não me viste a princípio, sentado à tua frente, apenas ocupando o espaço de uma cadeira na mesa por detrás da tua, onde conversavas com os botões. E não digas que não conversavas porque ao contrário de ti vi-te logo, vi-te de lábios arrepiados e molhados pelos pingos do nariz, como eu a tiritar numa madrugada que se constipa e vi-te os olhos inchados; vermelhos arroxeados, que me fizeram ficar na dúvida se te haviam pregado com dois socos e depois te soprado as pálpebras transformando-as em insufláveis. Lembrei-me do Eu miúdo a soprar a bóia na praia para chapinhar à beira-mar, e no Inverno, o Eu miúdo tornando a enchê-la antes de descobrir cada poça fossilizada pela chuva. Aí, voltei a desconfiar se as pálpebras inchadas não são as nossas bóias, pré-preparadas para flutuarmos na intempérie que de quando em vez, mais cedo ou mais tarde, acaba por declinar de cada olho.

Não tens como negar. Deixaste um rasto de pingos no tampo da mesa. Deixaste o cinzeiro a abarrotar de guardanapos com que limpavas o nariz. Levaste os olhos que já não eram bem olhos: duas pálpebras insufladas cobrindo e cobertas por dois círculos roxos. E no fundo acabo somente por ter a certeza de um fim; que saíste e fingimos não nos vermos, que te deixei sair sem me conheceres, que fiquei pelo desejo das lágrimas e pela inveja das pálpebras enquanto segredavas com os botões.

Por vezes não sei bem como tudo acontece, como te sentaste à minha frente, como começou não conseguir desviar o olhar de ti, porque se desenvolveram essas lágrimas… Esta noite já por diversas vezes, convenci o meu outro Eu de como era demasiado complicado chegar até ti com “olá”, formular um “posso?”, ou (imagina a ideia do meu outro)
“queres um lenço?” Sem dúvida, demasiado complicado para mim; que agora apercebo-me das 4 e 15 da madrugada e escrevo para outros que te vi chorar. Primo teclas sem praticamente as tocar porque quando sentimos, seja do pensamento às palavras ou das palavras ao pensamento, a equação é simples. Quando é verdade não há como contornar. Agora bastaram-me 15 minutos para descrever-te, reler-me e escrever a outros que ao olhares para mim baixei a cabeça chamando-me de estúpido, voltei a chamar-me estúpido, fingi-me de surdo (estúpido, estúpido, estúpido) ao murmúrio que não fizeste apenas para com os botões: como se alguém se importasse.

Até amanhecer ainda tenho que me convencer que nem tudo é tão simples. Fogem-me os dedos pelas teclas e teimam em escrever que o sentido de um sentimento não tem um ponto de interrogação após a palavra “Porquê”. Acabo somente por ter a certeza de um fim; verdade incontornável mas não absoluta – como todas as verdades.
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