terça-feira, fevereiro 28, 2006

Das pessoas a Pessoa

Estou dentro da Arca de Noé contemporânea.

Paris, estação Gare du Nord, 2002





Gosto de comboios. Gosto de estações de comboios. Ficar sentada na estação da Gare du Nord onde desfaço-me de mim, esqueço-me de mim, abandono-me e ao escapulir de mim sou da bagunça de malas, sou um destino sem despedidas nem partida, sou este alvéolo de Paris irrigado por caminhos-de-ferro e por esta miscelânea de pessoas; fabricando um Carnaval fora de época, desmentindo o relógio electrónico situado quase no tecto – a hora certa até ao segundo, a data ignorada, de Verão –, sou uma destas pessoas do não, não, do sim, sim, sou assim.

Gosto do faz-de-conta. Gosto da genialidade com que todos se apressam em passos de faz-de-conta. Os passos! A exaltação no movimento. Mais passos! Saltar a primeira e meter segunda, arranhar a terceira e meter quarta. Uma velocidade forçada. Forçar a quinta velocidade na esforçada máquina do corpo humano. O exagero nos passos. O exagero dos tempos. A genialidade com que todos se inventam. Que ninguém invento. Que ninguém já eu sou.

Sou uma das mulheres do Senegal. A de sapatos vermelhos bicudos, carteira vermelha, do vestido mais amarelo impossível; sou o sol da Gare. Sou do humano das coisas inanimadas. Sou da humanidade. Então sou a outra senegalesa, de almofada no rabo arrebitado, agora o vestido às elipses roxas e verdes, sou uma couve ou uma alface, e confundo-me com o trio de homens chegado à bilheteira de lancheiras isotérmicas verde fluorescente. Sou uma fusão do ver e sentir. Sou a impressão corporal de uma sombra. E a Gare du Nord é um Carnaval onde o genuíno génio humano é convidado a desfilar.

Sou o quarentão pouco baixo, forte e seco de bermudas beges, havaianas azuis com a bandeira do Brasil, pulseira de ouro com a inscrição Lídia no pulso direito, óculos de sol junto ao peito moreno mate, pendurados numa purista camisa floral, moderna para os antigos, como a pasta preta que agarro na mão esquerda, como a dos médicos dos anos vinte ou trinta. Podia ser um Ricardo Reis em Paris. Ou um Álvaro de Campos. Como o homem que olha por minuto, meia dúzia de vezes para relógio da estação. Um Álvaro hiperactivo nos gestos, nos suspiros, por cada suspiro liberta dois sonhos, por cada dois minutos esquenta a boca (e um pouco de nada a alma) com um cigarro, com um gole de vinho francês consola saudades do ópio e um pouco mais que nada consola a alma. Sou este homem, agora demorando-se na demorada bilheteira internacional, quando na bagagem da vida tem um excesso de viagens. Atrás de si está um monge budista, à sua frente na fila estão três miúdas escandinavas de mini-saia e um padre entre elas. Sou este Álvaro olhando-as, a “sentir tudo de todas as maneiras”, impondo-me uma disciplina que não conheço, convencendo-me que os olhos saltam-me da cara não pelo triplicado de loiras gigantes, mas para o homem da batina, que me lembra o tio beirão que me ensinou latim; era padre.

Sou também o quase albino de olhos azuis sentado a meu lado. Já tossiu tanto, espantando-me como não se desfaz. Fossem outros tempos, não era do tabaco, de certeza tuberculoso. Não mete conversa comigo, não me fala doutros tempos, porque é jovem mas simultaneamente de idade. Sou este meu companheiro de banco que se ri (embora a tosse) com a salgalhada de mortais que nos alcança pela visão. Sou esta criança ou jovem ou homem, deslumbrado e despreocupado sem medo da tranquilidade (quer lá saber o que é cliché), assim olho e sinto, agora livre e simples, de repente viva. Assim sou parte do Carnaval de quatro estações que se vive na Gare du Nord. Sou um pormenor, espelho de outro pormenor, de uma pintura de Magritte. Sou um, outro e outro: a genialidade de Fernando Pessoa: a ficção da vida quotidiana. (Diz-se que já nada surpreende.)

Surpreende-me um súbito carinho que de momento sinto por ovelhas. Desconfio que o homem sentado neste banco seja Alberto Caeiro. Quanto à rapariga que partilha o banco, lembra-me alguém que gosta de comboios.

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