quinta-feira, julho 21, 2005

Avenida do Mar

Às vezes afliges-te e enches a mão com o lado esquerdo do peito. Assim o fizeste há pouco, quando chegaste à ponta do Cais. Só lá ias pôr os olhos no mar. Chegaste quando uma rapariga tinha as costas voltadas para ti e os olhos entre as gaivotas e o mar. Virou-se distraída, foi contra ti. Trocaram um olhar de mulher para mulher, minha velha, e viste-lhe uma lágrima seca de rímel e, por baixo da lágrima, o coração espalmado em forma de boca que te bateu.

- Desculpa, ordenou a rapariga, e imediatamente o coração da boca fechou e de alma desatada ela fugiu do Cais.

Desculpa, pediste também, Virgínia, mas sabe lá ela, se a rapariguita partiu sem saber que ao esbarrar-te te deixou de mão no peito, de volta a um tempo onde ela não era nascida.

Estás a envelhecer, minha velha. Demoras mais do que o costume a sair do Cais para percorrer esta manhã pela Avenida do Mar. Não seja por isso o teu passo lento. Olho-te a atenção dos olhos no chão. Olhas o passeio como se filtrasses entre o calcário e o basalto quais as pedrinhas que Hansel e Gretel deixaram para o caminho a seguir. Não é coisa de velhos, minha velha. Sonhar o passado. Fazia-o também a rapariga de olhos concentrados

- Desculpa

em asas de gaivota.

Às vezes Virgínia, a natureza da memória atraiçoa-te e és capaz de jurar que te perdoaste mas a memória dói-te e mói-te e a erosão mental de lembra, relembra, lembra e relembra, lembra-te; és incapaz de esquecer. Às vezes sonhas-te no tempo da guerra que para a rapariguita é sinónimo de história de encantar o sono – Certa noite, sentou-se à beira da cama dela um homem da tua idade, a envelhecer, a voz lenta de embalar contou-lhe era uma vez uns homenzinhos iguais; verdes, sujos, castanhos, doentes, amarelos, negros. Só um homem vermelho. É uma história da guerra mas à beira da cama dela nem morte nem tiros – ao contrário da guerra, a história não derrama sangue. É a história de um soldado vermelho de amor por uma negra. Contaram-lhe o sentimento do amor e uma cabana. Contei-te também esta história mas sem sal ou cebola, crua. Contei do soldado que descobriu o acto do amor num palheiro quando te escrevi:

O Silva fez-se homem entre hectares de girassóis e não haverá quem lhe tire da preta nem de Angola, decretou hoje o meu capitão.

Às vezes minha velha, só certas noites, quando o Manuel envelhece e adormece primeiro que tu, a cama diz adeus ao corpo de pêra de pele mole caduca, que arrancas do teu marido. Levas-te em pontas dos pés até à cozinha, com a mesma atenção que agora dás às pedras do passeio da Avenida – São os instantes que duvidam das décadas em que ele é o teu marido.

- Porque dorme Manuel na minha cama?, perguntas ao soalho da tua casa nessas noites.

- Porque não dormes tu na minha cama?, perguntas a mim, na chegada à cozinha, e a tua mão de veias salientes desaparece pelo fundo adentro do forno a lenha que já não usas. Depois reaparecem as veias e os cinco dedos e uma caixa de latão e repetes:

- Porque não dormes tu na minha cama?, enquanto olhas o interior da caixa de latão.

São cartas, Virgínia, são cartas. Sempre escondeste de Manuel as nossas cartas que são respostas incapazes de mentir a ti por mim, por nós.

Ai, minha velha. Esta noite nem puseste os olhos nas cartas. Esta manhã só lá ias pô-los no mar. E lá estava a rapariga no Cais onde trocaram um olhar de mulher para mulher. Reconheceste-lhe uma rapariga chamada Virgínia décadas atrás. A minha Virgínia: estátua de carne na ponta do Cais, corpo de pêra mas rijo verde, típico de peras que trincadas sabem a virilidade de um quebra-nozes. Afinal sempre choraste à minha partida para Angola, era em lágrimas secas na panela do teu rosto que fervias a tristeza mas choraste. E afinal existia África sem ser em papel de mapa; existia guerra e mortes porque existiam homens, porque sempre foi assim. Porque os rapazes desse tempo eram homens, porque sim; e o porquê da minha pêra Virgínia mexer os lábios que do barco ao longe e ao de leve, desuni dos meus na despedida, na ponta do Cais:

- Eu espero, disse ela de língua congelada e não se ouviu mas disseste.

- Eu espero.

E a carne da minha pêra apodreceu como fruto seguidor da sua natureza, não é colhido, tomba no chão.

Em África haviam noites regidas pelos animais; a natura em código desde o zunzum dos insectos aos crocodilos submarinos do rio passava mensagem: “Proibida entrada a homens”. Mas persistia o combate, e o batalhão num misto de sobrevivência e condicionamento espremia-se na mata. Outras noites, quando o tempo era um lago largo de memórias estagnadas, repetidas à exaustão de eu saber o número de estrelas no céu, escrevia-te.

P.S – Virgínia, a poeira do envelope é da sola da minhas bota – foi o que arranjei de mais parecido ao pó da ducentésima nona estrela onde, juro de botas juntas, cruzaram-se num reflexo os nossos olhos.

Em África os homens eram verdes ou negros, as mulheres sol a noite negras, durante meses dos quais perdemos o fio entre sangues que nos despistavam se morrera branco ou preto, só uma mulher branca: a Cavalona Enfermeira, vulto confundido com as espingardas, fazendo achar-se pelo duo de gengivas com dentes impossível de esconder-se na boca.

(- Mas confundiu-me com quem? Acha-me com cara de quê?)

Depois soldados e oficiais ficaram surdos às gengivas, chamaram-na Enfermeira, Senhora Enfermeira, Senhora Dona Enfermeira, fomos-lhe o creme anti-idade tarde demais ao chamarmo-la Menina Enfermeira e por último, a última das brancas, era, carinhosamente, a Mimi.

Também a mim, Virgínia, a memória trai-me. Também com esses olhos mal mortos que pões no passeio da Avenida sei lá se olhei, só e sentado numa fazenda de pistola na mão, para a terra em pó do deus Zumbi se para o Reino dos Céus – morada que imaginei estampada no destinatário, abaixo do meu nome Reino dos Céus e não Angola, no exterior do envelope, através do qual endereçaste-me uma existência sem saída:

É bom estar só quando se quer. Manuel, O Coxo, pediu-me em casamento.

E para quê pedir desculpa, se Manuel jamais se desculpou ao exército por ser coxo, e os rapazes coxos não eram homens porque na guerra é assim. Porque às cinco da tarde o sol descarregava-se de raios em cima da tua carta como se fosse meio-dia. Eram cinco da tarde e os selvagens esqueceram o chá e torradas. Fomos os esquecidos. Porque esqueceram o meu batalhão cansado naquela fazenda, onde apenas a ameaça nos sobrevoava em asas de pássaros, bichos inaptos a estremecer uma única pena naquele ar sem granadas nem um tiro? Angola, cinco da tarde, temperaturas de meio-dia e tempo de guerra e que foi feito do som da guerra, que foi feito do mar, que é isto meu capitão:

- Aqui só a ameaça.

Capitão, Virgínia, porque faltou-me guerra para distrair da guerra? Da ameaça. Da tua carta.

É bom estar só quando se quer.

E repeti-te as palavras sem evitar que soldados como eu encontrassem-me só, eu a leste da fazenda e eles mais a leste ainda, estupidificados, na decepção de não haver uma bomba ou emboscada que lhes justificasse que o sangue do meu suicídio era do mesmo sangue da guerra.

- Desculpa, dizes, e porque o repetes pela Avenida, Virgínia?

Se do barco um corrimento de homens na baía do Funchal cuspiu à ilha os braços de outros, entre a falta de uns, está o teu abraço no Cais vazio de mim. Está a tua mão como capa cristalizada sobre o coração sem oxigénio, a pedir desculpa como se houvesse culpa, qual culpa, coitados de nós a quem nos tiraram a culpa, porque te afliges?

- Coitada da aflição da coitada, pensou a rapariga ao esbarrar-te e fugiu do Cais.

Estás a envelhecer minha pêra, como esta manhã na Avenida. Não seja por isso que quem vive na ilha há-de ter sempre o mar. O mar não envelhece. Não é coisa de velhos, minha velha. Olhar o mar.

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