segunda-feira, janeiro 30, 2006

É melhor Assim

“Desse modo viera Clarissa ter com ele: a bordo do navio, no Himalaia, evocada pelas coisas mais estranhas (tal como Sally Seton, essa tola, sempre tão franca e generosa, se lembrava dele sempre que via hidrângeas azuis)”.

Virginia Woolf, Mrs. Dalloway


Hoje um amigo disse-me que a esperança é um herói cavaleiro de espada ensanguentada, em nome de um espiritualismo medieval. De seguida argumentou historicamente, literalmente e conhecendo-o, de certo, contou dois a três episódios pessoais. Não sei quais.
Paralisei na palavra esperança e lá estava ela: a miúda vestida de militar, numa versão civil, sentada na sua mesa com as cadeiras, esvaziando o olhar numa esplanada em Patras.


Lisboa, 20 de Janeiro de 2006





Patras é agradável. Principalmente em noites quentes, a rua das esplanadas, escolhida como local de passeio pela maioria das pessoas. É a rua turística, sem dúvida, pensou Margrethe, mas não está a abarrotar, não será difícil encontrar uma mesa e descansar os pés, esperar por ele sentada. Margrethe tinha razão. Margrethe tinha sono. Talvez por isso sentou-se numa mesa manca, de costas para o ecrã da esplanada onde acontecia o espectáculo de encerramento dos Jogos Olímpicos, e pediu um café e um copo com água. James estava atrasado. Meia hora, talvez. Talvez o atraso fosse uma das suas características, ela conhecia-o o suficiente mas não o tempo suficiente para ter destas certezas.

O empregado interrompeu os pensamentos de Margrethe ao pousar na mesa o café. Pediu-lhe novamente água e perguntou as horas, no seu inglês de dinamarquesa. «19h15», respondeu em inglês o empregado grego. «24 Horas», disse Margrethe, tão baixo, como se continuasse somente a respirar. 24 Horas, as horas passadas entre o seu primeiro encontro com James e a delonga, na esplanada; só ela sentada na mesa manca, o bornal na cadeira a seu lado e em frente outra cadeira, vazia.

Margrethe suspirou bruscamente como quem dá um único “atchim”. Sacou do bornal de camuflado igual à mini-saia um cigarro; acendeu-o e tossiu. Ainda não se habituara ao tabaco, mas insistiu na aspiração do esguio cilindro. Descruzou as pernas e endireitou as costas num arco pronto a disparar dois foguetes, porque a sua t-shirt em asa delta era justa, nova, era preta; como as botas que calçava, de um tamanho muito acima do seu – Roubadas ao próprio irmão: cobiçou-as desde que ele as adquirira ao cumprir serviço militar. Já lá iam dois anos e desde aí as botas na Dinamarca sem pés, esquecidas – Não por Margrethe.

Ao partir de Copenhaga, Margrethe disse «Adeus mãe até daqui a um mês», telefonou para a sua outra casa e disse «Adeus pai», agradecendo o dinheiro da viagem, ele disse «Mereces pelos teus dezoito anos e eu confio em ti». Depois de mochila às costas olhou a porta fechar-se dizendo «Adeus mano», enquanto este a olhava nos pés, rindo-se mais do que o normal. Margrethe considerou que era a sua maneira distorcida de citar o pai: mereces pelos teus dezoito anos e eu confio nas botas.

Na tarde anterior, a bordo do ferry que a transportara de Itália à Grécia, fez contas ao dinheiro e ao tempo no seu diário de bordo: ia a metade da sua segunda semana de viagem. É mais que suficiente para visitar duas a três ilhas gregas, declarou Margrethe a si mesma. E ao chegar a Patras, algures entre o seu inglês de dinamarquesa e o inglês de um polícia grego, apercebeu-se (sem entender a explicação) que naquele mesmo dia, não lhe era possível apanhar um comboio até Atenas, de onde partiria num outro ferry para uma ilha. O polícia, de cara pingada em suor – culpa do notável esforço com que tentara ajudar Margrethe, utilizando um inglês com sabor a chá e com a reverência do bater da hora do Big Ben – inútil mas notável esforço –, balbuciou outra frase nebulosa e apontou o indicador que tremelicava (notável esforço) na mira de alguém no banco da estação de comboios: James. – Um rapaz de vinte e muitos anos, um ar de quem acaba de chegar ao destino, recuperava energias de pernas escancaradas, mochila ainda às costas e no canto direito da boca um cigarro, queimando.

Margrethe ficara sem tabaco durante a travessia marítima. Margrethe poderia dizer que por causa de um cigarro (começara a fumar no quarto dia de viagem, um dos seus embustes para matar horas mortas – segundo o diário de bordo tinha praticamente uma semana de possível vício), se dirigiu a James. Nunca disse isso. Não o pensou. Nem na espera na esplanada, nicotina atrás de nicotina, recapitulando todos os segundos passados com ele numa memória ainda fresca. Apresentara-se a James por responsabilidade de um atributo físico: o sorriso. O poder do sorriso, pensou ela, após agradecer ao empregado a água que finalmente bebia, com um dúbio esticar de lábios. O rapaz da estação tinha um sorriso de quem brinca com a vida e não o contrário; um sorriso de semáforo amarelo. O semáforo amarelo que desafia decisões num par de segundos. Era assim que James sorria. Quando fumava espraiado no banco da estação. Quando ela se aproximou e sentou e apresentou-se e esqueceu-se de pedir um cigarro.

Assim surgiu James para Margrethe.

Margrethe, embora tossindo fumou o primeiro cigarro até ao filtro e acendeu outro de seguida. Fez novamente sinal ao empregado e simplesmente disse «Café», sem pedido de água nem de que horas são. A noite correu bem. A madrugada um pouco mais atribulada! classificou ela para consigo mesma. James, que seca, refilou Margrethe, para o silêncio do cigarro, do café, do bornal e das cadeiras.

James conhecia Patras, pois era (sua) passagem obrigatória sempre que viajava para as ilhas. Conhecia uma de dezena delas, entre três arquipélagos diferentes, disse-lhe, «Depende do que procuras, percebes?» e Margrethe suspeitou que em ilhéus gregos poderia encontrar o canto mais refugiado do mundo, como uma toca capaz de corar Dionísio.

Deram entrada no hostel e ficaram no mesmo quarto, de quatro pessoas. O velhote da recepção, que usava camisola interior branca e boxers, não lhes deu nem boa noite nem boas-vindas mas estendeu-lhes ambas as mãos de bronze acastanhado: de uma palma retiraram a chave com a letra G do quarto que ficava no segundo andar, na outra palma cada um depositou 10 euros pela noite. Depois jantaram nas escadas carunchosas, entre o primeiro e o segundo andar do hostel, comida de supermercado. E gastaram o preço de três menus turísticos em álcool num bar, que ficava vinte passos de James distante do hostel. Acusou a alcoolemia de ambos que foram mais que vinte, os passos dados por James no regresso às camas já pagas. Margrethe bebia cerveja ao ritmo que actualmente um carro consome gasolina. James encarou esse facto como justificação para a pequena mas óbvia pança da rapariga, a destoar da sua constituição que pelos seus cálculos rondava uns meros 47kg. Notara a proeminência do ventre à primeira vista, no entanto, ao contrário da dinamarquesa, não esta nem outra particularidade corporal (quanto muito a totalidade do corpo) era motivo para o seu interesse por ela. Era uma questão de género: Margrethe era mulher.

Margrethe às apalpadelas pelo interior do bornal, sem o retirar da cadeira a seu lado, lá encontrou a caixa de costura do tamanho de uma de fósforos. Prenda da mãe, dizendo-lhe “Pode ser preciso”, sem saber que ela a abriu; olhou-se no espelho do lado interior da tampa, passou batom para o cieiro porque realmente era preciso; certificar-se que ela existia, olhando-se, rabiscando os lábios numa força disparatada, ela existia, James ausente existia, olhou-se nos olhos e fechou-os. Fechou a caixa. Uma, duas, duas e meia… quantas horas teriam passado para que os seus olhos a tivessem olhado tão vivos como a mesa manca, tão vazios como as duas chávenas de café, como o copo com um milímetro de água?

Assim desapareceu Margrethe para James.

De madrugada o quarto tinha as quatro camas vazias, Margrethe tinha o soutien como cinto, na boca tinha duas línguas com a de James (tesa como a erecção do rapaz), que na mão tinha um rectângulo plastificado. Foi Margrethe a colocar-lhe o preservativo. Foi um trintão africano de pijama completo (mangas compridas e pernas cobertas, embora nessa noite estivessem não menos que 30 graus) quem saiu da casa de banho do segundo andar, de escova de dentes húmida na mão, quis dormir e inocente, tentara abrir a porta do quarto G. Não conseguiu. Ele e a sua escova desceram até à recepção. Subiram com o velhote que usava ainda as boxers mas o tronco nu – (A temperatura não menos que trinta graus.) A chave mestre rodou, o escuro do quarto apareceu, ouvindo-se molas ora comprimidas ora esticadas, gritos «Aiiiii!» de rapariga misturados com voz de rapaz: James perguntando: «Quem é?, Quem é?»

Do corredor, o velho do bronze acastanhado berrou ao escuro «Duas camas!», perguntou «Porque trancaram a porta?», e pior disposto que o seu maldisposto caracterizador rejeitara qualquer resposta ao fechar novamente a porta. Olhou o africano; exibia um sorriso patusco e estático com os dentes bem lavados e escova sempre na mão. Entretanto das escadas aportara no hall outro africano, – amigo do primeiro, dono da quarta cama daquele quarto – também de pijama colecção Outono/Inverno, sem escova. Os amigos falaram-se e o velhote não entendeu. Riam-se e o velhote meteu mãos aos bolsos. Estendeu-lhes uma chave sem qualquer letra em relevo. Não lhes deu boa noite como era seu apanágio, mas apontou a continuação das escadas dizendo «Sótão. Têm cama.» Nessa noite não riu mais ninguém.

No quarto G, James retirou o preservativo de interior tão inviolado como quando Margrethe o desenrolara.
«É melhor assim, miúda.»
«Assim?»
«Dá para dormir umas 3 horas, o que dá 3 euros e tal por hora de cama.»
Margrethe não soube se culpa da recente ressaca, se do susto de toda a situação, entendia nada.
«O quê?»
«Pagaste 10 euros pela cama», lembrou ele, e subiu as escadas do beliche para ocupar a cama de cima.

Adormeceu sem me dar boa noite, pensou Margrethe, enquanto alguns empregados recolhiam cadeiras da esplanada. Sentiu uma vontade enorme de levantar-se como fizera de manhãzinha; abandonou o hostel quando o risco de ser vista ou reconhecida, lhe pareceu mínimo. Mas como esquecer-se que de manhã arrancara uma folha do diário de bordo onde escreveu “Às 18h30 na rua das esplanadas. Beijo. M.” Dobrou o recado em quatro e colocou-o entre os atacadores do ténis direito de James. Impossível que ele não o tenha visto, esclareceu-se Margrethe, numa banda sonora mental: Should I stay or should I go.

Patras era passeada por cada vez menos pessoas. Ao longe um rapaz corria em contraste com a discrição instalada na noite. É James, suspeitou Margrethe. Não. Nas últimas 24 e poucas horas todos se pareciam com ele. Se a miúda de mini-saia camuflada sorriu foi porque na estrada em frente o semáforo estava amarelo.


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