quarta-feira, junho 30, 2004

À Primeira é de Vez (One)

“I admit it...what's to say (…)
I got a sixteen gauge buried under my clothes (…)
I got a backstreet lover on the passenger seat”
Vedder, Gossard; Once

Não é preocupante se te rires descontroladamente. Não é o teu marido que está no teu lado da cama mas bem sabes que é o marido de alguém, logo

- Cláudia, o Renato chegou-me a casa sem aliança

perante uma cena destas no palco dos teus lençóis, bem sabes que
(“uma imagem vale mais que mil palavras”)

é despreocupante se te apeteceu rasgar as cortinas brancas do quarto e fingir que baixas de vez o pano, evitando a estreia desta peça, evitando essa tua ânsia por substituir a imagem que vês pelas mais que mil palavras; podes tentar

(fechar os olhos e desejar com força)

esquecer-te da mandíbula descaída, dos teus olhos mais inabaláveis do que um morto e

(concentra-te no teu respirar: um, dois, três…)

admira-te que mantenhas a verticalidade ao encarar outra pele que não a tua no teu lado da cama, um batom que é o teu ilustrando outros vincos labiais, mas
(tu nem gostas daquele tom rosado)

reparas no carimbo epidérmico acusando um dedo nu e

- Cláudia, o Renato chegou-me a casa sem aliança

mesmo que os conseguisses agredir com

-Bang! Bang!

descrições da imagem que vês, eles não te iriam compreender, talvez porque

(convém fingir não te perceber)

deixaram de te olhar de pés fixos em harmonia com a gravidade, a mão dormente não pela maçaneta fria da porta, escancarada, e no quarto, no fundo

- Não é nada do que estás a pensar

(convém fingir que quem não percebeu foste tu)

convinha acreditar que não te viraram ao contrário no mundo, nem te enterraram a cabeça ainda mais que a de uma avestruz, e o cérebro no fundo do fundo, às piruetas, como quando colocas na máquina de lavar essa camisa de noite cor-de-rosa que vês; a cobrir

(da mesma cor do batom que também é teu, mas tu nem gostas daquele tom rosado)

uma maçã-de-adão que arrefece no teu lado da cama e embora a reconheças e a esse dedo nu

- Cláudia, o Renato chegou-me a casa sem aliança

sabes bem que se conseguisses falar, de nada te adianta conheceres milhares de palavras porque

(de muito te adianta teres um revólver em casa quando não o queres usar, ou seja, não é a mesma coisa que não o ter)

há imagens que nos cortam a língua e dão corda aos maxilares e tu não te libertas do

- Bang! Bang!

duplo estrondo entre momentos
dentro de momentos
no palco dos teus lençóis, o apodrecimento de uma maçã que é do teu marido, porque embora não estejas no teu lado da cama, sabes bem que ao lado do teu marido expira a validade de uma outra maçã, do marido de alguém, logo

- (…) a casa sem aliança

não é preocupante se te rires descontroladamente entre momentos
por momentos
evitas essa ânsia por substituir a imagem que vês emoldurada no que era a vossa cama; o chantilly até combina com morangos, tal como um cortinado branco a cobrir duas sangrentas maçãs-de-adão

(e tu que nem gostas do tom rosado).

quinta-feira, junho 24, 2004

RASGA-ME

Dizem-me que estou viva. Mesmo quando só, esbarro num reflexo que me dita que os mortos não têm as pálpebras inchadas. Os mortos não choram. Não necessitam de bóias pré-preparadas para flutuar na intempérie que, de quando em vez, acaba por declinar de cada olho vivo. O exterior não é bóia se me afogo interiormente. Finjo que não o reconheço, mas acabo sempre por me agarrar a algo – invisível ou imperceptível – ou algo agarra-se a mim. Dizem-me que morreste e às vezes vejo-te chorar. A mim, deixaram-me as lágrimas porque não nos sinto. Logo, sou um morto-vivo até que a morte nos una outra vez.


Conto de Carne e Osso

Essa história de te queixares à tua mãe, Srª D. Camélia, de não comeres lasanha de frango há mais de um mês, não ser nada disto que querias quando o Renato te cumprimentou com

- Parabéns, pá

palmadinhas nas costas e tu talvez a desconfiares que nem essa barba rija me impediria de vos manter aqui; a ti e ao teu rabo, plantados no sofá, mesmo que nenhum dos dois tenha já idade para estórias da categoria “era uma vez”.

Lá por não saberes onde colocar o teu polegar viciado em zapping, não saberes se o dedo aguenta a ressaca, porque te arranquei o botão encarnado do comando
(que mais parecia um foguete, que o diga, e disse, melhor miou o gato
-Miauuuuuuuuuu)

apercebe-te ao menos que para não acertar em ti, acertei na cauda cinzenta do felino, e tu

- Drama

provavelmente a pensar na próxima queixinha recompensada com

- Chico, a mãe faz-te a lasanha de frango

algo caricato, como essa fotografia do rally em que tu e os teus amigos finalmente entraram e grudaste no prego, por cima de ti, escapando-te o pormenor que a fita-cola não é a melhor opção, por isso

- A foto caíu

as pessoas sentadas no sofá e de quando em vez, a apanhar contigo e os teus amigos de capacete a lhes rirem no colo, na cabeça, mas na tua cabeça não te cai

- O lixo

que mesmo provada a inexistência da geração espontânea não implica que as larvas não apareçam, nem aparece a peúga que esqueceu-te debaixo de um tapete, comigo a

- Porra

ficar ainda mais fula por nunca conseguir colocar-te na gaveta o par, conseguir perceber que “era uma vez” uma casa que se tornou um espaço demasiado apertado, onde se arruínam coisas, onde se emaranham os nossos domínios, e
(o Renato
- Parabéns, pá)

tudo o que é meu é teu e tudo o que é teu é meu nunca chegando a ser meu

- Porra

nem teu

-Drama

nem a casa que por vezes é uma pocilga, por vezes o azul vascular a dilacerar entre duas cabeças desvairadas e troncos desnorteados, sem latitudes nem longitudes, incapazes de traçar um mapa porque a bússola nutre-se de pó algures na balbúrdia da dispensa, e a piorar
(a D. Camélia
- Chico, a mãe faz-te a lasanha de frango)

a ausência dos bafos relaxantes no cigarro porque os cinzeiros estão empanturrados, acredita-me

(não chegamos a consenso de quem era a vez de os despejar)

essa história que contaste à tua mãe, já ela conhece desde o dia em que o teu pai acordou em casa e foi

-Porra
-Miauuuuuuuuuu
-Drama

se queixar à tua avó de não comer lasanha de frango há mais de um mês.

sexta-feira, junho 11, 2004

Esqueceu-te Parar para Correr

À Andréa, pelo meu atraso

ainda que tivesse pressa nesta dedicatória


Tentando raciocinar agora com calma, não sou eu que estou assim tão atrasada quanto isso, não és tu que irás matar as saudades nem eu tão pouco, e esta que vejo no espelho tenho a certeza de que não é a mesma que atendeu o telefone e

- Estou?

de maneira nenhuma te reconheceu a voz arrastada que

- Tenho saudades tuas, Maria

me fez libertar a asa da chávena com bafo a Lúcia-lima enquanto o corpo se desenterrou do sofá, a cabeça do chapéu de coco da Sabina que usava quando eu a reler o Kundera em mais um dia de “Insustentável Leveza do Ser”, tu a me esmagares o nome de indicador espetado numa página amarela

- Tenho saudades tuas, Maria

eu a revirar os olhos que já não eram bem olhos; duas pálpebras insufladas cobrindo e cobertas por dois círculos roxos, agradecida de não me veres as olheiras, não veres uma pele baça acusando que

- Foste mazinha em não me dar o teu número

extinguiu a luz do rosto; o tabaco entope-me poros e cada vez mais sebo a se oxidar e por isso um nariz salpicado por pontos negros, por isso eu agradecida de não ter uma daquelas maquinetas que comprou a minha irmã

- Videofone, Maria

eu engolindo uma espinha invisível quando

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

tu a me facilitares vinte minutos, não, um minuto por cada ano da minha vida, logo tu a ditares trinta minutos sem pedir autorização, oferecendo-me uma pressa e
(os presentes não se recusam)

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

fui rápida e eficaz; apressei-me para o frasco das mãos acetinadas, da firmeza do rosto e correcção das rugas
(não correcção, prevenção das rugas)

enquanto o frio lá fora eu a fingir o Verão de cara banhada em pó de bronze, a dar no lenço de papel autógrafos de batom, hidratante e suave com sabor a framboesa, a me lamentar ao frasco do Chanel nº5 de todo o dia ter tido como companhia a garrafa de água porque
(cumprir a recomendação de beber 1,5 litros por dia)

agora a bexiga cheia por dentro e cá fora esta pança proeminente, tentar condizer o meu je-ne-sais-quois não pendurado num cabide e uns jeans de cintura baixa após destruir o guarda-fato inteiro e montar em cima da cama a Feira da Ladra, depois optar pela primeira escolha ou, simplesmente, com dois dedos de conversa mental saber exactamente

- Tenho saudades tuas, Maria

usar preto e parecer mais magra, disfarçar a palidez beliscando as bochechas e em vez de beber mais chá
(1,5 litros de líquidos por dia; não esquecer que a água que o chá, café ou sopa contêm também conta)

colocar as saquetas húmidas sobre as pálpebras e apagar o vermelho arroxeado, o que só por si exigiu 10 minutos para descongestionar os olhos, enquanto tu e eu num outro congestionamento confuso, de confusões porque

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

tentando raciocinar agora com calma, não estou assim tão atrasada como tu
(três horas e trinta minutos conspurcando o ambiente da sala com argolas de fumo e entupindo novamente os poros)

nem esta que vejo no espelho ,de certeza, é a mesma

- Foste mazinha em não me dar o teu número

procurada na lista amarela para receber

- Tenho saudades tuas, Maria

essa tua urgência e eu estupefacta só a puxar um fecho na boca aquando o som mudo do auscultador, pois deve ter sido a falta da maquineta

- Videofone, Maria

que te privou do meu rosto desfigurado, impessoal, desconhecido agora na calma da espera a desesperar e a rever a voz arrastada que continuo sem reconhecer; agora bem nítido o teu dedo a esmagar a Maria errada

- É só apanhar um metro, num pulinho estou na linha vermelha

eu, de poiso na recta verde que contêm Alvalade
por acaso
a rimar com a Saudade que tu não irás matar nem eu tão pouco, embora aqui cheia de pressa mas não pronta para dizer adeus às saudades
dizer adeus às minhas saudades das saudades
de que tenham pressa de matar saudades e tu a caminho

- Tenho saudades tuas, Maria

eu novamente de corpo enterrado no sofá e cabeça num chapéu de coco como a Sabina do Kundera que agora encontra-se só, a olhar-se num espelho ainda “perseguida pelo mesmo instante perdido!”.





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